De novo, a estrada romana...

Entre a Ponte Nova e a Posa 

       Nasci em Fornelos, freguesia atravessada desde tempos imemoriais por um antigo caminho, que ligava à estrada de Braga a Ponte de Lima as áreas setentrional e meridional, respectivamente, do actuais concelhos de Terras de Bouro e de Ponte da Barca, sendo também utilizado, por vezes, por moradores da freguesias de Beiral e do Couto de Gondufe. Da Boalhosa, este caminho descia pela margem esquerda (sul) do Trovela até ao Porto da Trave, também chamado Ponte da Trave, onde passava à margem direita (norte). Daí, pela Gramosa, podia descer-se até à Ponte Nova, especialmente quando os viajantes (sobretudo os de Boalhosa, Beiral e Gondufe) pretendiam continuar na direcção de Braga, ou seguir a pé pelo meio da freguesia de Fornelos, na direcção da vila de Ponte de Lima, designadamente nos dias de feira.
       O caminho, que fazia a ligação entre Braga e Ponte de Lima, coincidia parcialmente com a estrada medieval e, mais ainda, com a antiga via romana, e veio a determinar, pelo sul, os limites desta freguesia de Fornelos com a de Rebordões-Souto. Com efeito, entre estas duas freguesias, com possíveis variantes, pendentes, no correr dos tempos, da afluência dos caminhantes procedentes de outras vias, correria a estrada romana. Em muitos trechos perdeu-se-lhe o rasto, por não ser pavimentada e porque a nova estrada, aberta no século XIX, permitiu que a antiga fosse abandonada ou esquecida e mesmo, em parte, absorvida pelos campos de cultivo e pelos eidos das habitações.
       São esses alguns dos motivos porque, mesmo na área que me é mais familiar, se torna difícil reconstituir o seu trajecto. No espaço geográfico a sul da vila de Ponte de Lima, e zonas limítrofes, não sobreviveram pontes com indiscutível aparelho romano, nem outros monumentos de vulto, não há calçadas da época e os marcos miliários podem ser e de facto muitas vezes foram deslocados para mais ou menos longe do seu primitivo lugar de implantação.
       De qualquer modo, poder-se-á definir, pelo menos, o que, em termos actuais, se costuma designar como um canal de passagem, tendo em conta as condições topográficas, designadamente as curvas de nível do terreno e a consistência do solo, assim como a existência de elementos arqueológicos sugestivos em áreas próximas e até mesmo o uso tradicional desses canais como espaços de circulação. A ponderação destes factores está por certo subjacente, de um ou de outro modo, ao facto de os autores se manifestarem geralmente unânimes em relação ao mais antigo canal de circulação entre Braga e Tui e em especial à sua travessia no concelho de Ponte de Lima. O mesmo não se poderá dizer, no entanto, em relação aos locais exactos por onde passaria a estrada.
       Quando, em 1974, procedi à investigação de que resultou a publicação do estudo A Romanização no Concelho de Ponte de Lima (Ponte de Lima, 1978), posteriormente integrado, como breves achegas, no livro Ponte de Lima no Tempo e no Espaço, editado em 2000 pela Câmara Municipal, um dos maiores problemas que se me colocou foi, de facto, o da reconstituição do traçado da via romana entre Braga e Tui, especialmente nos trechos que dizem respeito ao concelho de Ponte de Lima. Aceitando provisoriamente como adquirido o traçado proposto por Carlos Alberto Ferreira de Almeida (Vias Medievais, Porto 1968, pág. 25) para o troço que descia de Braga até ao rio Cávado e daí até ao extremo do concelho de Vila Verde, cuja definição ainda hoje não é inteiramente pacífica, adoptei, para o concelho de Ponte de Lima, a reconstituição proposta por José Rosa de Araújo (Caminhos Velhos…, Viana do Castelo, 1962, pág. 96-106).
       Por aí me quedei até agora, embora no meu espírito continuassem a pairar muitas dúvidas, que no conjunto ainda se não dissiparam. Assim permaneceria, se não verificasse que, talvez sob a pressão das circunstâncias, designadamente por haver necessidade de apresentar trabalho para justificar os apoios monetários facultados pela Comunidade Europeia, para este projecto, se davam, com alguma ligeireza, todas as dúvidas por resolvidas, ao colocar as tabuletas que deveriam assinalar os lugares de passagem da chamada Via XIX em território limiano.
       A situação que despertou a minha atenção refere-se a um local onde já passei milhares de vezes, desde os tempos da minha infância. Na estrada (EN 537), que liga a estrada nacional Ponte de Lima-Braga (EN 201) à igreja paroquial de Fornelos, está assinalado como desembocadura da via romana um caminho que vem do meio ou, melhor, dizendo, do extremo dos campos de cultivo e que nestes se extingue. E, como se fosse explicável um ziguezague sem qualquer acidente geográfico que o motivasse, está igualmente assinalada, uns metros mais abaixo, a continuação desse caminho num outro que atravessa a freguesia na meia de baixo (a metade norte). Ora a realidade era a seguinte: o velho caminho (a possível estrada romana), actualmente tomado pelas silvas, vindo do sul, saía mais abaixo, depois de contornar a Quinta do Sol.
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Percurso da estrada romana entre os lugares do Carrão e da Chão de Mena. A encarnado, as setas correspondentes aos sítios onde estão as tabuletas com a indicação errada dos locais onde desembocaria e continuaria a estrada romana (o traço amarelo, em ziguezague, corresponderia ao traçado anormal que as setas assinalam). A linha tracejada a encarnado (--+---+---+--), nos mapas do Município, assinala pretensamente os limites das freguesias.

À procura da verdade, tentemos, por conseguinte, reconstituir a passagem da via romana na freguesia de Fornelos. Noutra ocasião, se houver oportunidade, estudaremos o seu traçado pelo menos no concelho de Ponte de Lima, se não todo o percurso de Braga até Valença. Trata-se, mesmo assim, de uma reconstituição hipotética, embora a consideremos a mais provável de todas. Conjugaremos, para lá chegar, alguns factores que, no seu conjunto, alicerçam as nossas conclusões: os achados arqueológicos, a documentação medieval ou mesmo posterior, até ao século XVIII, e a existência de um caminho antigo, pelo menos medieval, que já acima referimos e se manteve em uso, em grande parte da sua extensão, até ao lançamento da estrada moderna e foi utilizado como linha de demarcação entre as duas freguesias de Fornelos e Rebordões-Souto. Deste caminho se conservaram alguns trechos, outros ficaram debaixo do pavimento da nova estrada, quando com ela se cruzavam, ou foram englobados nas propriedades particulares, acrescentados às terras de cultivo ou ao assento das habitações.
       Vinda dos lados de Braga, depois de atravessar a Queijada, a Via Romana, mal entrava em Fornelos, atravessava a ponte sobre o rio Trovela. A antiga ponte podia ou não ser de pedra. A expressão Ponte Nova, embora não exija necessariamente, sugere, com toda a probabilidade, a existência, no local ou nas proximidades, de uma ponte velha, arruinada com o passar do tempo. Curiosamente se diga que essa ponte nova é hoje a mais antiga das duas que existem no lugar. Já em 1258 (na inquirição relativa à freguesia de Anais e em algumas outras) era presumivelmente este o lugar referido com essa designação: Ponte Nova! A passagem da via originou a formação, nas proximidades, de um aglomerado habitacional que está na origem do topónimo Póvoa.
       Subindo da velha ponte, o leito da antiga via ainda é patente num dos cômoros da propriedade, situada a norte da estrada, que pertenceu ao comerciante pontelimense Costa Brito; segue depois, contígua, do lado norte, às casas que bordejam a EN 201, até chegar ao Carrão (será que o topónimo lhe aludia?), diluída nos campos de cultivo, atravessando então a ribeira de Folinho, a uma ou duas dezenas de metros da referida estrada nacional. Quando, a seguir aos campos da outra margem, se eleva o nível do terreno, a antiga via reaparece entre as herdades da família Vieira Antunes, bordeja a Quinta do Sol e, passando, a norte, mais uma vez contígua a algumas casas, chega à tal estrada de acesso à igreja paroquial de Fornelos.
       Já bastante truncado, provirá desta área um daqueles marcos miliários que os romanos colocavam nas estradas para assinalar as distâncias a percorrer ou já percorridas. Foi cortado e mutilado para servir de peso de lagar. Recolhido no antigo passal de Fornelos (propriedade que hoje pertence ao Eng. Gaspar Castro), que se estendia da igreja até à via ou às suas proximidades, ninguém sabe ao certo qual era o seu exacto lugar de origem. Pelo que resta da inscrição, não é possível atinar com a milha assinalada, mas refere-se ao imperador Maximino I, podendo datar-se de à volta do ano de 237, uma vez que será coetâneo de outros marcos que assinalam o seu quinto império. 
       A antiga via continuava em frente, do outro lado da estrada (EN 537), mas o pequeno trecho que se seguia, a poente, desapareceu, no século XX, em consequência do arroteamento das terras que atravessava. Volta porém a aparecer mais à frente, passando por trás das casas existentes no lugar da Chã de Mena e desembocava em seguida na EN 201, cujo leito cortava em diagonal, prosseguindo do outro lado.
       Ao atingir o nível mais alto, como a actual estrada, e no começo da descida definitiva para Ponte de Lima, a seguir às terras de cultivo, ainda se vêem, no meio de um trecho de pinhal, os sinais de uma espécie de pequena congosta, que lhe correspondia. Passava depois no terreno onde assentam duas casas recentes (as do Artur Martins e do Amândio Corredoura) e na terceira, a mais antiga (a antiga venda do Corredoura), sabe-se mesmo que deixava a sul o terreno onde assenta a cozinha e a norte aquele onde se ergue o resto da casa.
       De novo cruzava em diagonal a EN 201, e, passando por trás de um casa de rés-do-chão (do piloto aviador Inácio do Lago Passos e das suas irmãs), no ângulo formado com o caminho que desce da aldeia, afastava-se um pouco mais da EN 201, para contornar a quinta de Sandilhão. O tombo de Fornelos de 1552, ao descrever os limites da freguesia, refere-se à via pública que ia ter à cruz de Sandilhão (A. D. B., Livro Primeiro do Registo Geral, fl. 287).
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Reconstituição da travessia da via romana, no limite entre as freguesias de Fornelos, de um lado, e as de Rebordões-Souto e Rebordões-Santa Maria, do outro (a amarelo: possível variante).
[Clique sobre a imagem para ampliar]

       Depois perdemos-lhe o rasto, mas não restam dúvidas de que atravessava de novo a EN 201, acompanhando o regato de Vilar, que depois transpunha, e prosseguia, amoldando-se às curvas de nível, pelo meio dos terrenos que hoje se distribuem pelos campos de cultivo (e algumas construções muito recentes), até chegar à laje da Posa, onde confluía outro antigo caminho, ao fundo do Campo de Santo Amaro, mas um pouco afastado do lugar onde viria a ser implantada a capela.
       O topónimo Posa não passa despercebido a quem se ocupa das vias romanas e medievais. Pausa ou pousa é o mesmo que paragem. Com essa palavra designava-se o lugar onde se parava para retemperar as forças, proceder as reparações nas carruagens, fazer mudas de cavalos e recolher provisões. Posa seria a mansio ou a statio que antecedia a passagem do Lima.
       A importância do local justifica a existência de miliários, colunas de pedra com inscrições destinadas a informar os viandantes das distâncias percorridas ou a percorrer, ao mesmo tempo que recordavam o nome dos governantes e lisonjeavam a sua prosápia.
       Um desses miliários tem, entre os demais, a singularidade de exibir uma forma troncocónica, singularidade que aumentou quando lhe sobrepuseram o actual chapéu de remate, depois que, em 1641, do Campo de Santo Amaro, onde se encontrava, numa área limítrofe com a freguesia da Feitosa, foi levado, para o solar de Bertiandos. A inscrição latina, que recobre o fuste, traduzida, refere: “O imperador César Caio Júlio Vero Maximino, Pio, Feliz, Augusto, Germânico Máximo, Dácico Máximo, Sarmático Máximo, Pontífice Máximo, cinco vezes tribuno, cinco vezes imperador, Pai da Pátria, cônsul, procônsul, e Caio Júlio Vero Máximo, Nobilíssimo César, Germânico Máximo, Dácico Máximo, Sarmático Máximo, Príncipe da Juventude, Filho do Senhor Nosso Imperador Caio Júlio Vero Maximino, Pio, Feliz, Augusto, restauraram as vias e pontes arruinadas com a passagem do tempo, sendo encarregado Quinto Décio, legado de Augusto, propretor. A 18 milhas de Braga”. De acordo com esta inscrição, o miliário foi, por conseguinte, erigido no tempo do imperador Maximino I (173-238) e concretamente na primeira metade do ano de 237, que corresponde ao seu “quinto império”, mencionado na epígrafe.
       Nas proximidades, e, mais concretamente, a sul do caminho público do lugar da Posa, numa propriedade da família do Conde da Aurora, encontrou-se também a parcela de outro marco miliário, muito gasta, podendo deduzir-se, das poucas letras que restavam, que datava da primeira metade do século IV, uma vez que a inscrição se referia ao imperador Dalmácio, filho de Júlio Constâncio e, por conseguinte, sobrinho de Constantino Magno, após cuja morte foi assassinado.
       Da Posa, a via romana seguiria pelo meio da freguesia da Feitosa, indo ter ao cimo da rua de Merim, que era o único local onde há alguns anos se viam (esperemos que ainda hoje se vejam) restos da antiga calçada. Mas como o nosso propósito era apenas o de tratar do percurso relativo à freguesia de Fornelos, damos aqui por terminada esta pequena viagem pelos caminhos do tempo do Império Romano. 
António Matos Reis

Este texto foi publicado no "Anunciador das Feiras Novas" do corrente ano de 2011. Com breves correcções, coloca-se agora ao alcance de todos os leitores. Acrescentaram-se os mapas, elaborados sobre a fotografia aérea do SIG (Câmara Municipal de Ponte de Lima) e suprimiram-se as duas fotografias de marcos miliários, que já acompanham o texto publicado anteriormente neste blogue.


Terra amada

Terra mãe - Terra amada é aquela onde eu nasci. Dedico-lhe este "blog". Como destinatários desta dedicatória incluo os meus queridos pais e os meus avós, de saudosa memória, os meus caros irmãos e familiares, os meus bons conterrâneos e amigos.

Apontamentos para a história de uma freguesia: Fornelos
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      Quem da ponte da Senhora da Guia, tomando a estrada nacional, se encaminhar na direcção de Braga, percorridos cerca de dois quilómetros, vai encontrar, na margem da estrada, uma capelinha minúscula, dedicada ao Senhor de Pias, assim designada por se localizar no ângulo de uma antiga quinta desse mesmo nome (a quinta das Pias), que, transformada, deu lugar ao Campo de Golfe de Santo Amaro, nome este tirado de uma capela, de maiores dimensões, que se encontra mais à frente. Rente à capelinha do Senhor de Pias, inicia-se a freguesia de Fornelos. Não se faça caso das placas de sinalização, pois não será esta a primeira vez que podem induzir o viandante em erro em relação a esta freguesia. Até findar com a quinta do Outeiro, no extremo da freguesia de Queijada, por uns cinco quilómetros se desenrola a freguesia, quase toda a nordeste da estrada, ficando-lhe algumas vezes aquém e outras ultrapassando-a para o outro lado, pois, ao que parece, o limite com a freguesia de Souto (ou Rebordões-Souto) era definido pela estrada medieval (esta sucedânea da antiga via romana), a que a rede viária traçada no século XIX introduziu significativas alterações. A freguesia tem um perfil longitudinal, próxima do rectangular, confrontando com as de Queijada, Duas Igrejas, Serdedelo, S. João da Ribeira, Arca, Feitosa e Rebordões-Santa Maria e Rebordões-Souto. Para certos efeitos práticos, como sucede com a frequência escolar e com o compasso pascal, tendo por centro a igreja paroquial, costuma dividir-se em duas metades: a Meia de Cima, a sudeste, e a Meia de Baixo, a noroeste.
      Geologicamente, corresponde a uma extensa mancha de xisto, que teve repercussões na toponímia (monte do Lousado) e se reflecte na qualidade dos seus vinhos, e apenas é interrompida num dos extremos da freguesia com o afloramento de uma pedreira do mais duro granito que existe, no sítio de Penides, sobre o lugar de Oliveira.
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Panorama da área central, com a igreja paroquial
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     1. As origens da freguesia.
  
     Conjectura-se que o nome da freguesia, Fornelos – plural de Fornelo, por sua vez diminutivo de Furno ou Forno ­– pode estar relacionado com monumentos que remontam à pré-história, pois seria uma das designações que, em datas posteriores à romanização, devido ao seu aspecto, se aplicavam popularmente aos dólmens ou antas e a outros monumentos[1]. À míngua de mais aturada pesquisa arqueológica, refira-se que o P.e Manuel Dias identificou várias mámoas nos confins desta freguesia com a de Serdedelo[2] e o arqueólogo Abel Viana[3] aqui localizou uma cista: trata-se de monumentos funerários datáveis do Neolítico e da Idade do Bronze, que documentam a antiguidade do povoamento desta área geográfica. Em meados do século XX, achou-se, no lugar do Campo da Vinha, na berma do caminho adjacente ao recinto onde no final do século XX funcionava a escola do ensino primário (ou ensino básico), um pequeno “machado” de pedra polida, também do neolítico. Do final da idade do Bronze ou dos alvores da Idade do Ferro, seria um castro de feição arcaica existente no alto do monte de Santa Maria Madalena, que infelizmente não pode ser objecto de um estudo mais esclarecedor sobre a sua data e importância, por ter sido quase totalmente arrasado pelas obras de arranjo e embelezamento da estância panorâmica.
     A paróquia tem como orago principal S. Vicente, com festa no dia 22 de Janeiro. S. Vicente, diácono da igreja de Saragoça, foi torturado e morto em Valência durante a perseguição de Diocleciano, tornando-se o mais conhecido dos mártires hispânicos e o único cujo culto foi incluído no calendário litúrgico de toda a Igreja ocidental. Várias localidades reivindicam o privilégio de darem guarida aos seus restos mortais. A Crónica do Mouro Rasis informa que durante a perseguição de Abdrerramão eles foram transferidos para uma igreja existente no Promontório Sacro (Cabo de S. Vicente), a fim de evitar a sua profanação pelos muçulmanos. D. Afonso Henriques promoveu a sua transladação para a Sé de Lisboa, em 1173. Já no século VII existia em Braga uma igreja dedicada a S. Vicente, que é, de longa data, o orago principal de pelo menos dez igrejas localizadas na antiga arquidiocese[4], e o seu culto devia estar em grande voga, quando foi construída a primeira igreja de Fornelos, aí pelo século IX ou X.
  
      2. A influência da estrada romana.

     Dos tempos da ocupação romana, datam os contactos da região com o mundo exterior através da via romana que ligava Bracara Augusta a Tui e a Lugo. Fornelos situa-se na margem dessa vellha estrada – a via XIX do Itinerário de Antonino Pio. Depois de atravessar a Queijada, esta via entrava em Fornelos no lugar do Navio; descia ao Trovela, que atravessava no lugar que viria a chamar-se Ponte Nova e a partir daí concidiria com a actual linha de limite entre as freguesias de Fornelos e de Rebordões-Souto, até ao fundo da Quinta de Sandihão e a partir daí acompanhava durante algum tempo, e a uma certa distância, o regato de Vilar, que depois transpunha, e, amoldando-se às curvas de nível, prosseguia, pelo meio dos terrenos que hoje se distribuem pelos campos de cultivo (e algumas construções muito recentes), até chegar à laje da Posa, onde confluía outro antigo caminho, ao fundo do Campo de Santo Amaro, mas um pouco afastado do lugar onde viria a ser implantada a capela[5]. Daí seguia pelo meio da freguesia de Feitosa, até chegar à Vila de Ponte de Lima, onde desembocava na rua de Merim.
      Esta via, que possivelmente já decalcava trilhos anteriores, continuou a ser usada na Idade Média, chegando a ser designada como caminho de Santiago, e com ela coincidiu a estrada velha ou estrada real, que só a partir do século XIX, e mesmo assim com grandes sobreposições, foi substituída pela moderna estrada nacional. Antes de atravessar o Lima, existia uma statio ou lugar de paragem, onde se mudavam os cavalos, se tomavam alimentos e se faziam aprovisionamentos para a jornada. É natural que esta statio ou paragem não se localizasse rigorosamente no espaço da futura vila de Ponte de Lima. O marco miliário que a assinalaria ‒ e que, a sublinhar a importância do local, mereceu mais requintada configuração e acabamento mais aperfeiçoado que os outros ‒ encontra-se hoje no terreiro do solar de Bertiandos, mas estava originariamente no campo de Santo Amaro. Sendo impossível identificar com rigor o sítio da sua implantação original, erguer-se-ia próximo do local onde confinam as freguesias de Rebordões-Santa Maria, a de Feitosa e a de Fornelos, não junto à capela de Santo Amaro mas no lado oposto do campo (hoje dividido em múltiplas parcelas). Começa ali o lugar da Posa, repartido pelas duas primeiras destas freguesias, topónimo que, na sua etimologia, significava o mesmo que pousa, equivalente de statio.
      Nas estradas romanas, as pontes eram fundamentais para se poderem atravessar os cursos de água. Os romanos conheciam uma técnica importada do oriente e muito aperfeiçoada pelos etruscos, que recorria ao arco de volta perfeita, para tornar possível a construção sobre enormes vãos, assim permitindo o lançamento de pontes bem seguras. No percurso de Braga a Tui há restos de pelo menos cinco pontes romanas, mas é possível que uma outra se localizasse em Fornelos, onde facultava a travessia do Trovela. Foi usada ao longo de toda a Idade Média, mas, com o andar do tempo, entraria em ruína, vindo a ser substituída no século XVI ou XVII. Foi ela que deu o nome ao lugar – Ponte Nova – embora hoje todos lhe chamem a ponte velha, por ter sido substituída no século XIX por aquela que, algumas dezenas de metros a montante, dá passagem à estrada nacional.
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Miliários provenientes da freguesia de Fornelos






      Tal como se fazia nos séculos XIX e XX com os marcos quilométricos e hoje se faz com vários tipos de placas distribuídas ao longo das estradas, para informar sobre as distâncias, os romanos colocavam marcos miliários, destinados, como o nome indica, a assinalar as milhas – trajectos de 1481 metros, como terá sido mais comum na Península Ibérica – já percorridas ou a percorrer. Eram colunas de pedra, que mediam, em geral, dois a três metros de altura e de 50 a 70 centímetros de diâmetro. Nestes miliários havia inscrições que mencionavam, com os seus títulos, os imperadores que tinham mandado fazer as obras ou a quem elas eram dedicadas ou pelo menos em cujo governo foram levadas a cabo, assim como o nome dos magistrados e encarregados dos trabalhos, a natureza das obras realizadas e um número, precedido das siglas M ou MP (Milia Passum), indicando a distância em milhas, contadas desde um ponto de partida, normalmente uma capital de província, neste caso a partir de Braga. Pertenciam ao troço da estrada romana correspondente à freguesia de Fornelos pelos menos dois marcos miliários que ainda hoje se conservam na sua totalidade ou parcialmente. Um deles servia de peso num lagar do antigo passal. Foi levado para o jardim do edifício das Obras Públicas, na antiga Casa dos Quesados, frente ao Liceu de Viana do Castelo, hoje Escola Secundária de Santa Maria Maior e em data mais recente alguém o levou, não sei a que título, para o átrio da Biblioteca Municipal de Vila Nova de Cerveira[6]. O uso que lhe deram provocou-lhe diversas mutilações: cortado ao meio, resta-lhe uma das partes e essa com dois recortes, de alto a baixo, de tal modo que muitas letras desapareceram. Data de 235 a 238 p. C., como se infere da inscrição de que resta o trecho seguinte:
  
C IV ER MA AV
SIM S CAE R
DA C MAX SAR
PR CEPS I VE

A leitura será esta:
«[...][Imp(erator) Caes(ar)]
C(aius) Ju[l](ius) [V]er(rus) Ma[x(imus)] Au[g(ustus)],
[Nobilis]sim[u]s Cae[sar, Ge]r[m(anicus) Max(imus)],
Da[ci]c(us) Max(imus), Sar(maticus) [Max(imus)]
Pr[in]ceps I(u)ve[ntutis] [...]»
 
No que ainda resta, esta inscrição coincide com a de outro[7], já referido, que se achava no Campo de Santo Amaro, em 1641, quando foi mudado para o terreiro do solar de Bertiandos, onde hoje se encontra. É um bloco troncocónico de granito, com a secção maior da parte de cima. Remata com um «chapéu» também de granito. Data de 238 p. C. e assinalava a XVIII milha. Sofreu retoques que adulteraram algumas letras. Corrigidos esses erros, temos a seguinte inscrição:
  
IMP CAES C IVL VERVS
MAXIMINVS P F AVG GERM
MAX DAC MAX SARMATIC MAX
PONT MAX TRIB POT V
IMP VII P P COS PROCOS ET
C IVL VERVS MAXIMINVS NO
BILISSIMVS CAES GERM MAX
DAC MAX SARM MAX
PRINC IVENTVTIS FILIVS
IMP D N C IVL VERI MAXI
MINI P F AVG VIAS ET
PONTES TEMPORIS
VETVSTATE COLLAP
SOS RESTITVERVNT
CVRANTE Q D
LEG AVG PR PR AE E
A BRAC M P XVIII

    Leitura: «Imperator Caesar Caius Julius Verus Maximinus, Pius, Felix, Augustus, Germanicus Maximus, Dacicus Maximus, Sarmaticus Maximus, Pontifex Maximus, Tribunicia Potestate V, Imperator VII, Pater Patriae, Consul, Proconsul, et Caius Julius Verus Maximus, Nobilissimus Caesar, Germanicus Maximus, Dacicus Maximus, Sarmaticus Maximus, Princeps Iuventutis, Filius Imperatoris Dominii Nostri Caii Julii Veri Maximini, Pii, Felicis, Augusti, vias et pontes temporis vetustate collapsos restituerunt, curante Quinto Decio Legato Augusti Propraetore, a Bracara Milia Passuum XVIII»[8].
    Tradução: O imperador César Caio Júlio Vero Maximino, Pio, Feliz, Augusto, Germânico Máximo, Dácico Máximo, Sarmático Máximo, Pontífice Máximo, 5 vezes tribuno, 5 vezes imperador, Pai da Pátria, cônsul, procônsul, e Caio Júlio Vero Máximo, Nobilíssimo César, Germânico Máximo, Dácico Máximo, Sarmático Máximo, Príncipe da Juventude, Filho do Senhor Nosso Imperador Caio Júlio Vero Maximino, Pio, Feliz, Augusto, restauraram as vias e pontes arruinadas com a passagem do tempo, sendo encarregado Quinto Décio, legado de Augusto, propretor, a 18 milhas de Braga.
    Maximino I (173-238) era trácico, filho de um godo chamado Micca e de uma alana chamada Ababa e tomou-se notável pela sua elevada estatura. Associou ao governo o seu filho Máximo, referido na inscrição. Ambos foram apunhalados pelos soldados da sua guarda. O seu quinto império, referido no marco miliário, decorreu na primeira metade do ano 237 (Janeiro a Junho). Quinto Décio Valeriano, também referido na inscrição, foi legado propretor da Mesa Inferior em 234 e da Hispânia Citerior em 238. O seu trabalho na reconstrução das vias é confirmado por muitos outros miliários[9].
    
     Se à chegada dos romanos, o noroeste da Península Ibérica vivia em plena cultura castreja, e a romanização fez-se lenta e progressivamente. Para além desse importante legado comum, que é a nossa língua, e apesar da escassez de pesquisas arqueológicas, podemos, no concelho de Ponte de Lima, apontar diversas marcas da influência romana, que se traduziu na alteração de vários hábitos, a nível das actividades económicas e das atitudes perante a vida. Pelo que respeita à economia, é de realçar a gradual intensificação do comércio, com a utilização da moeda, a intensificação da mineração e a introdução de uma nova dinâmica na agricultura, baseada na organização de unidades de exploração chamadas vilas. As mudanças no âmbito da economia foram acompanhadas ou seguidas por alterações da mentalidade, especialmente com a introdução de novas práticas religiosas. Se os castros implicam a sobrevivência de um tipo de sociedade através da época romana, o incremento das vilas correspondia à penetração da sociedade romana na província, onde a primeira vivia. Foi o exemplo das vilas que provocou a transformação das maneiras de cultivar a terra que está na base do sistema agrário adoptado durante muitos séculos (até ao século XX) no noroeste do país e, por conseguinte, na nossa área geográfica. A escolha dos melhores terrenos, a exploração intensiva, a variedade de culturas e de situações, e a dispersão das habitações através dos campos estão na sequência deste sistema e concorreram para que as populações do alto se fossem convertendo à vida na planície. À instauração das vilas e dentro delas à utilização de certos benefícios em comum se deve a introdução dos lagares, dos moinhos de água, das represas... Para a moagem dos cereais, nos castros anteriores à romanização, aparecia o moinho de rolo, que consistia numa pedra rectangular, ligeiramente côncava, sobre a qual num movimento rectilíneo de vaivém, se esmagavam os alimentos com outra pedra oblonga e arredondada. Este tipo de moinho encontrou-se por exemplo no monte de Santa Maria Madalena. Embora lhes seja anterior, o moinho de pequenas mós redondas não deve ter-se difundido na Península antes dos romanos, e, ainda que estes viessem a utilizar moinhos de outros tipos (a «mola asinaria» e os moinhos de água de roda horizontal), só na Idade Média os últimos se devem ter espalhado na nossa região: foi a pequena mó manual, a condizer com uma economia de base estritamente doméstica, a que predominou entre as populações locais, mesmo sob o domínio romano.
      Tendo-se esboroado o império romano, após as invasões bárbaras, escasseiam, para o nosso rincão natal, as notícias sobre o período que se lhes seguiu. Resta apenas dizer que na Alta Idade Média (como se costumam designar os primeiros séculos após a queda do império), assistimos, por toda a região, ao aparecimento de habitats indígenas, que progressivamente têm sido inventariados, dando-lhes a designação que, pelo menos em boa parte dos casos, é de considerar imprópria, de “castros agrícolas”, quando na verdade se tratará dos incipientes aldeamentos medievais. Entre esses impropriamente ditos “castros agrícolas”, conta-se na freguesia de Fornelos o da Quinta do Crasto, sobre o ribeiro Trovela, no lugar de Oliveira.
     
     3. Da Idade Média até ao século XVI.

   Até ao século XII não voltamos a encontrar informações específicas sobre o território da actual freguesia de Fornelos, que em 1220 aparece integrada na terra de Penela, nas Inquirições então levadas a efeito. O mosteiro de Rendufe possuía aí oito casais, o de Refojos seis casais e meio e a Ordem do Hospital recebia meio morabitino de renda. O Rei não detinha o padroado da igreja nem possuía qualquer reguengo; no entanto toda a paróquia devia pagar de fossadeira (tributo que, em princípio substitui a prestação do serviço militar) cinco bragais, dois côvados e cinco dinheiros. Os moradores não isentos pagavam “voz e coima” (imposto relativo à justiça), davam, por cada família, um frângão e “vida” (alimentação por um dia) em cada mês, tanto ao mordomo como ao casteleiro das proximidades; ao mordomo, que na altura se chamava Pedro Peres, davam ainda, de cada família, três ovos, pela Páscoa. O casal de Outiz (Outido?) pagava de tributo um presunto (uma “espádua”). Tinha deixado de pagar tributo ao Rei a quintã de Vilar, pertencente a dois cavaleiros, assim como outras propriedades pertencentes a dois nobres (Estêvão Peres e Estevão Soares) e de modo semelhante sucedeu com um casal adquirido por um clérigo, que passou a não pagar fossadeira. Em Anquião situava-se a pousa do rico-homem.
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Passagem das Inquirições de D. Afonso III relativa à freguesia de Fornelos
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     Nas Inquirições de 1258, as várias circunscrições, em vez de terras aparecem designadas como julgados, o que significa que em vez da função militar passara a prevalecer a da administração da justiça. Naquela época, «terra» não significava o mesmo que município ou concelho, pois as terras ou tenências equivaliam a circunscrições territoriais criadas para fins de organização militar. O julgado era uma circunscrição criada para efeitos de administração da justiça e de governo local. Como já referimos, Fornelos, em 1258, fazia parte do julgado de Penela. Com efeito, à terra e depois julgado de Penela, além de nove freguesias integradas no actual concelho de Vila Verde pertenciam também as de Fornelos, Queijada, Sinde, hoje designada como Anais, Gaifar, Fojo Lobal, S. Lourenço do Mato, Sandiães, Calvelo, Cabaços, S. Martinho da Gândara, Gemieira, S. João da Ribeira, Arca, Lavradas, Gondufe, Mosteiro de S. Marta e S. João de Serdedelo, e Beiral. Nas inquirições de 1258, mantém-se as informações de que o Rei não tem o padroado da igreja e de que a pousa do rico-homem se localizava no Anquião. Pagava-se voz e coima (impostos correspondentes à prestacção da jusriça) e tinha de se participar na anúduva (construção ou reparação de fortificações), de dar “vida” (de comer, por um dia) e dois ovos por família ao mordomo, e um ao casteleiro, em cada mês. Regista-se o curioso facto de o mordomo ter fugido, naturalmente com o produto dos tributos arrecadados, do que resultou a passagem da sua herdade a propriedade reguenga. Deve ser o mesmo de 1220 o casal que pagava um presunto, de “censória”. Das herdades pertencentes às ordens religiosas apenas se mencionam cinco casais do mosteiro de Refojos, com o nome dos respectivos rendeiros. A fossadeira já não é um encargo colectivo, mencionando-se os que a ela estão obrigados, os respectivos quantitativos, em bragal e em frângãos ou em dinheiros. Um fenómeno novo que então se observa é o do amádigo, que levava beneficiar da isenção de impostos e tributos aqueles que criassem na sua casa o filho de algum nobre: registam-se nesta freguesia pelo menos doze casos, sendo um deles o do filho do juiz!
      De acordo com o Censual do Bispo D. Pedro [1085-1091], a paróquia de S. Vicente de Fornelos pagava 10 quarteiros de cereal de tributo anual à Sé de Braga (“De Sancto Vincenti de Fornelos X quartarios”)[10]. Em 1320, segundo o Catálogo das Igrejas, organizado por D. Dinis devia contribuir com 45 libras durante três anos (Ecclesia Sancti Vincenti de Fornello ad quadraginta et quinque libras”) para custear a luta contra os inimigos da Fé; em 1372, nas Rationes Decimarum Lusitaniae, a pagar à Santa Sé para financiar as Cruzadas, cabiam-lhe 12 libras e 10 soldos (Ecclesia Sancti Vincenti de Fornelos in primo termino XII libras, X solidos), e em 1528, segundo o Livro dos Benefícios e Comendas, conhecido através de uma cópia do século XVIII, “Fornelos rende LX”.
      Atendendo à organização do território que ainda se mantinha, foi abrangida não pelo foral manuelino de Ponte de Lima mas pelo de Penela então designada de D. João de Castro, para a distinguir de outras duas de idêntico nome existentes no país, outorgado em 20-06-1514.
       O século XVI parece ter correspondido localmente a uma época de prosperidade. Ter-se-á construído uma nova igreja ou pelo menos a capela-mor, segundo a inscrição que ainda hoje se pode ler, aberta em elegantes caracteres góticos numa lápide rectangular inscrustada na parede exterior do lado nascente: 
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esta hobra mandou f
zer aanres abade natur
al d muimēta da br·1·5·3·2·
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(Leia-se: esta hobra mandou fazer Afonso Anriques abade natural de Muimenta da Beira – 1532)
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Epígrafe da igreja de Fornelos
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      Nada mais ficou em pé dessa construção. Obras realizadas no início da década de oitenta do século XX, que incluíram a demolição de algumas paredes, vieram pôr a descoberto numerosas pedras até agora escondidas sob a caliça e incrustadas no interior das paredes da capela-mor, as quais, pelo estilo, são de referir à época da inscrição e, por conseguinte, datáveis do início do terceiro decénio do século XVI. Tais pedras foram retiradas, vindo algumas a serem posteriormente inscrustadas como elementos decorativos nos muros do adro. Na sua maioria eram parte integrante de uma abóbada de nervuras, e poucas seriam provenientes da decoração exterior do templo. Mais concretamente registámos: 3 arranques de abóbada, 42 aduelas de nervuras, 13 aduelas de arco simples, 7 aduelas de arco com arquivoltas, 4 fechos de abóbada, 4 fechos de abóbada mais pequenos, 4 peças de caleira, mais 2 fragmentos, 2 fragmentos de falso colunelo, 1 «Agnus Dei» de remate de empena, 1 parte de gárgula zoomórfica. Estes elementos, se bem que abundantes em número, não nos permitiram a reconstituição, no seu diagrama e nas suas dimen­sões, de forma inteiramente fora de dúvida, da construção e que se integravam. Deviam pertencer a uma abóbada apoiada sobre arcos em ogiva, que nasciam, em número de quatro, sobre as colunas dos ângulos, cujos capiteis não foram identificados. Na ausência de outros elementos decorativos, a moldura das ogivas, a decoração dos florões em que as mesmas se entrecruzavam e as duas peças da fresta caracterizam esta obra como uma manifestação epigonal do tardio gótico provinciano[11].
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Cruzeiro de Fornelos
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      Foi no mesmo século levantado o cruzeiro da paróquia. que se localiza a algumas dezenas de metros da igreja. Ligados à prática religiosa, os cruzeiros paroquiais marcavam, em geral, o lugar de retorno das procissões, em dias de festa ou de especiais momentos de culto, como as têmporas, assinalando a extensão da esfera do sagrado à esfera do mundo quotidiano dos homens. Com frequência, foram objecto de especial cuidado na sua execução, mais complexos nuns casos e mais singelos noutros. Todo em granito, o cruzeiro de Fornelos é dos mais simples, mas não é desprovido de harmonia e beleza. Apoiando-se directamente sobre um plinto ou estilóbato quadrangular, que suporta duas inscrições, é constituído por uma coluna toscana (derivada da coluna dórica, mas sem estrias ou caneluras e mais delgada), sem base, com um fuste liso a rematar num capitel composto por formas geométricas, a saber um equino ou almofada circular e um ábaco quadrangular, sobre o qual se apoia uma cruz que tem de um lado o Cristo crucificado e de outro a Senhora da Soledade. Noutros tempos, este cruzeiro, como sucede com alguns outros, estava protegido por um alpendre aberto, com um telhado de cobertura. Quando foi construído o ramal que liga a estrada de Braga a Serdedelo, alteraram ligeiramente o lugar de implantação do cruzeiro e, talvez para arranjar espaço, retiraram-lhe o alpendre, e, em compensação, construíram a capela situada a poucos metros, que, no começo deste século servia de capela mortuária.
     O cruzeiro tem no plinto da base, voltada ao sul, a inscrição:
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Pº  VELHO  E
S. M. M. Aº  M
ÃDARO. F. ES
TE  CRº . 1583
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     (Leia-se: Pero Velho e sua mulher Maria Afonso mandaro [isto é, mandaram] fazer este cruzeiro 1583)
      Na face voltada a poente, outra inscrição diz:
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FO I   MV
DADO  N
O AN 1701
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(Leitura: Foi mudado no ano 1701)

     Há poucos anos foi este cruzeiro vítima do embate de um camião, que o derrubou, deixando-o partido em vários fragmentos, que posteriormente foram colados, como no local se pode observar.
      A inscrição existente no medalhão que sobrepuja a porta de entrada da capela, e proveniente do alpendre que noutros tempos abrigava o cruzeiro, é a seguinte:

ESTA  OBRA M
ANDOV   FAZE
R O RDº REITO
ML  DO REIS
ANNO DE 1701
          
          Restam-nos algumas dúvidas em relação à última letra da quarta linha e às duas últimas da quinta linha. 
(Leitura: Esta obra mandou fazer o Reverendo Reitor Manuel do[s] Reis. Anno de 1701)
     
 A paróquia de Fornelos, que tinha como anexa a de Beiral, constituía então – e não sabemos desde quando – uma comenda do Ordem de Cristo. Foi em 1514 que D. Manuel I criou as chamadas Comendas Novas da Ordem de Cristo, “com o rendimento de 20 mil cruzados impostos nas igrejas do padroado”, destinadas a recompensar os serviços prestados na guerra contra os mouros, em África, e atribuídas a quem lá fosse servir durante dois anos a expensa própria. Datará dessa data a criação da Comenda de Fornelos, assim como a de numerosas outras. Quando, em 25 de Abril de 1552, foi elaborado o tombo desta paróquia[12], era comendador D. Jorge Manuel fidalgo da Casa de El-Rei, que à data se encontraria em S. Jorge da Mina, onde era governador, que teve a representá-lo na elaboração do tombo o notário António Perez, morador no lugar da Posa, em Rebordões. Este tombo é importante a vários títulos e especialmente por nos informar sobre os limites com as paróquias vizinhas e sobre o património da igreja, entre o qual, além casas, localizadas a sul e a poente do templo, nas quais certamente morava o cura, avultava um grande passal, com horta, extensa vinha, searas e pomares em que prosperavam as laranjeiras, figueiras, pereiras, macieiras e outras árvores. Quanto aos limites da freguesia, transcrevemos do Tombo, segundo a grafia da época: “Item primeiramente começa ha llemitação da dita freguesia de Fornellos nas llageas da Posa homde hestao has cruzes nas ditas llageas e lloguo da houtra banda do quaminho contra a Posa hestão três marcos homde chegua a freguesia da Feitosa he Rebordaos e Fornellos e dalli vai ter as llageas do Villar homde hestaa hum marco homde sai augua dos caneiros de Villar homde hestaa hum marco que chega en ha freiguesia do Souto e dalli vai ter a hūa pedra que hesta antre o campo do Meiroall e o Quampo do Paço de Villar e dalli vai ter ha cruz de Sãodilhão e dalli pella estrada publleca e ao marco que hestaa em Mena que se chama a pedra do couto e dalli polla dita hestrada e vay ter ao Ribeyo que say do Navio e vay ter ao marco que hestaa no quampo do Navio que parte com a freiguesia do couto da Queijada e dalli vai ter ao Posegeiro e dalli vai ter a casa que foi de João da fonsecca e dali va ter ao chão do Momte Quallvo e dalli dece a Sanbento e dalli dece a quimgosta de Fontão as llageas de Quamcellos he dalli atravesa[13] pera hum padrão que hestaa hasima de Torente e dali vai ter polla chã do momte damtre Cerdedello he Fornelos he de marquo em marco segundo se vera he dalli vay ter ha Estivada e ao marquo he dalli vai ter ha fonte dos Alldotes he dalli vai ter ha Hescoseira que hestaa ao marquo que chamão Devesa que foi de Martim Pereira homde chegua a Sambemto he são João da Ribeyra he dalli vai ter às Santas he dece a pedra que se chama da Betureira he dece dalli ao marquo de Sobre Fontes e vallo homde chegua ha igreja[14] da Feitosa he Rebordãos he dali vai ter as ditas llageas da Pousa homde estao as cruzes homde começamos ha dita demarcasão”.
      Na segunda metade do século XX recuperou-se uma antiga pia baptismal, achada nas redondezas da igreja e datável do século XVI. No século XVII a mesma igreja beneficiou de obras, datando dessa época o púlpito, em cuja mísula de suporte ficou insculpida a ouro a data de 1633.
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      4. Últimos séculos.
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     No século XVIII, a igreja sofreu uma profunda remodelação, de que resultou o aspecto com que a conhecemos no século XX. Quando em 5 de Junho de 1720, os habitantes da freguesia obtiveram autorização do prelado diocesano para construir a torre dos sinos, já o corpo da igreja estaria concluído ou em fase muito adiantada[15]. A capela mor quinhentista, conforme consta da provisão dada a uma petição do Comendador de Fornelos e Beiral, em 15 de Fevereiro de 1782[16], foi demolida para se fazer outra nova, benzida no ano seguinte[17].
     No fim do século XIX altearam-lhe as paredes, erguendo o tecto do templo e, possivelmente, tornando as janelas mais amplas, o que, segundo a memória que, na nossa juventude, recolhemos das pessoas mais idosas, aconteceu na mesma data e foi obra do mesmo artífice que construiu a casa da família Castro, existente para lá do cruzeiro, e o edifício da antiga escola[18] (que eu e várias gerações de alunos da “meia de cima” frequentámos, e agora, com algumas alterações, é a sede da Junta de Freguesia), que na parede voltada à igreja tem uma placa com os dizeres AN(O) D(E) 1886. No fim do século XX, demoliram e alargaram as paredes da capela-mor, para obter mais espaço para os fieis que assistem aos actos litúrgicos.
      Segundo as Memórias Paroquiais de 1785[19], havia no corpo da igreja três altares laterais: o da Senhora do Rosário, o de S. Caetano e S. Sebastião e o das Almas. A imagem de S. Caetano passou a ter posteriormente o seu lugar, como padroeiro secundário, no retábulo da capela-mor e foram acrescentados mais dois altares, chegando a igreja ao século XX com mais os altares do Coração de Jesus e de Santo António. Entalhados em madeira policromada (repintados na segunda metade do século XX), os dois retábulos mais antigos da igreja eram os da Senhora do Rosário e de S. Sebastião, ambos em estilo “joanino” (correspondente à segunda metade do reinado de D. João V), ou, por outras palavras, de um período que deve ser colocado entre 1730 e 1750. Os outros, incluindo o da capela-mor, artisticamente mais pobres, são de estilo neoclássico, correspondente às últimas décadas do século XVIII ou primeiras décadas do século XIX.
      De acordo com as referidas Memórias Paroquiais, existiam nesta freguesia oito capelas, dedicadas a Santiago, Senhora do Rosário, Senhora da Conceição, S. Luís, S. João Baptista; S. Bartolomeu, Santo Amaro e Santa Maria Madalena.
      A da Senhora da Conceição localizava-se entre o lugar dos Eidinhos, Felgueira e Outido, junto de um caminho que ainda se chama “da Capela”, e foi construída por iniciativa do Doutor Francisco Nogueira Lima e Sam Payo, Cónego Magistral na Sé Primacial de Braga, que em 29 de Novembro de 1753 requereu licença para a edificar, sendo-lhe dada esta em 5 de Janeiro do ano seguinte[20]; pretendia fazê-la “de boa arquitectura”, “em bom terreno e lugar público junto a sua quinta”, “perto da estrada pública que vai pera Ponte de Lima e com as portas para o terreiro público” e “fora dos muros da dita quinta”, e apresentava como motivo para despacho favorável a utilidade pública, designadamente por possibilitar a assistência à missa, sobretudo quando no inverno as cheias do ribeiro que atravessa o caminho da igreja dificultavam a passagem, assim como a administração dos sacramentos aos habitantes dos lugares mais afastados como os de Oliveira, Vila Nova, Casais, Juncainho, Ponte da Trabe (sic; hoje diz-se Porto da Trave), Gramosa, Torre, Trelães e outros; em 28 de Outubro de 1756, nova provisão autorizava o pároco da freguesia de São Vicente de Fornelos a proceder à respectiva bênção[21]. Devia estar em grande abandono quando no início do século XX, os responsáveis da freguesia perante a necessidade de ter uma capela no cemitério, considerada a distância a que este se encontrava da igreja, aproveitaram para a fazer as cantarias e decerto as demais pedras da capela da Senhora da Conceição, enquanto as imagens recolhiam à próxima habitação dos herdeiros da família do fundador (onde chegamos a ver pelo menos algumas), nos Eidinhos, até se dispersarem.
      Uma provisão episcopal de 1748 autorizava D. Joana Josefa de Castro a confessar-se na capela de Nossa Senhora do Rosário localizada na sua quinta do Paço do Outeiro[22]. Provavelmente a ela se refere a licença concedida, em 5 de Julho de 1788, a Manuel Gomes de Lima Bezerra, assistente na sua quinta de Fornelos, para se dizer missa no oratório da respectiva casa[23]. No entanto, vinte anos depois, João Gomes de Lima, que pelo nome nos parece da família do anterior, disponibilizava o património necessário para se construir uma capela dedicada a S. João, na quinta do Outeiro[24]. Encontramos com efeito referências a três capelas na quinta do Outeiro – Santiago, S. João Baptista e Nossa Senhora do Rosário – que não sabemos até que ponto se identificam, podendo ter-se alterado apenas o nome do orago, no correr do tempo. Na quinta de Badela, vimos também um curioso medalhão de granito incorporado numa coluna a segurar uma varanda, onde se lia uma inscrição com os seguintes dizeres, um tanto enigmáticos: HOC ROSARVM FECIT QUOD REGNARE INCIPIT 1641. Referir-se-ia a alguma capela, da qual seria proveniente? A capela de S. Luís Rei, que se localizava na Quinta da Fonte do Anquião, pertencia, de acordo com as Memórias citadas, a João de Sá Coutinho, da vila de Ponte de Lima, e foi recentemente restaurada. A de S. João Baptista era de um neto de Francisco de Morais, da cidade de Coimbra. Neste momento não conseguimos saber a que capelas se referem as provisões episcopais de 20 de Julho de 1724, de 5 de Setembro de 1729, e de 22 de Outubro de 1743, que autorizavam respectivamente D. Mariana Antónia de Meneses[25], Agostinho de Sousa e Castro (de Viana)[26], D. Benta Caetana Luísa da Rocha (mulher de Agostinho de Sousa e Castro, eventualmente o mesmo que acaba de ser referido)[27] a colocarem confessionários nas capelas localizadas nas respectivas propriedades. Da capela de S. Bartolomeu não temos qualquer outra notícia. Também não conseguimos saber se a capela existente na quinta de Vila Nova era alguma das acima referidas. De 1812 é a sentença relativa ao património da capela de N.ª S.ª do Alívio, sita na Quinta de Pias, a favor de Tomás Manuel Branco e sua mulher, da vila de Ponte de Lima[28]. E ainda em 1846 se tratava do património que havia de dotar a capela de Santo António, no lugar do Eido Velho[29].
      As duas capelas mais importantes da freguesia continuam a ser as de S. Amaro e de Santa Maria Madalena.
      A de Santo Amaro, advogado dos membros locomotores, localizava-se na proximidade da estrada medieval (e, por conseguinte, da estrada romana), caminho de Santiago, e ainda lhe passaria na vizinhança a estrada romana, motivos que lhe mereciam especialmente a devoção dos viandantes. Os romeiros costumam dar voltas à capela (“fazer a romaria”), segurando pernas e/ou braços, de madeira ou de cera, que antigamente traziam por ex-votos e que agora alugam na própria capela. É desde sempre a única capela da freguesia administrada pelo pároco e para ele revertem as receitas das esmolas. Em 1766, esta capela beneficiou de obras, que não devem ter sido de grande qualidade, a julgar pelo que dela se manteve até aos nossos dias[30]. Celebram-se aqui duas festas: uma no dia 15 de Janeiro, correspondente ao calendário litúrgico, e outra no domingo a seguir ao primeiro sábado de Agosto (possivelmente para aproveitar a passagem dos romeiros do Senhor da Saúde, na freguesia de Sá). É o santo muito invocado como advogado dos pés e mãos e também, especialmente para os devotos das freguesias da margem sul, mais próximas de Viana, que alí acorrem em elevado número no mês de Janeiro, para as orvalheiras, e daí o ser conhecido nessa zona como o Santo Amaro dos Orvalhos. Quando foi escrita a Corografia Portuguesa (publicada em 1706), realizava-se aqui uma feira franca, por ocasião da festa do mês de Janeiro[31]. Esta capela foi entregue ao pároco da freguesia, de modo a substituir com o produto das esmolas a Côngrua de cinquenta mil reis destinada à sua sustenção, e, administrada pela Junta de Freguesia a seguir à implantação da República, foi de novo entregue ao pároco. Na tampa de uma sepultura existente ao pé do altar, lemos a seguinte inscrição: 
     
SL / EX JOAN/NE MENDES / DE VAS.os / ET VXORE D. AT.A / DE S. / PAIO ET CO / HEREDIB / US / 1677 
(Sepultura de João Mendes de Vasconcelos e sua esposa D.ª Antónia de S. Paio e herdeiros – 1677).
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Capela de Santa Maria Madalena
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      A capela de Santa Maria Madalena[32] situa-se no extremo poente da freguesia, no monte que desde tempos imemoriais se chama o monte das Santas. A primitiva foi mandada edificar, entre 1621 e 1624, por D. Inês de Magalhães, viuva de João de Magalhães de Meneses, proprietária da quinta da Rasca, situada na freguesia de S. Mamede de Arca, contígua à vila de Ponte de Lima, num terreno localizado no monte das Santas, no prolongamento da mesma quinta. Para garantir a sobrevivência da pequena ermida e a realização de alguns actos de culto, de acordo, aliás, com a lei canónica então em vigor, D. Inês dotou-a com um dos maiores campos da sua quinta da Rasca[33]. Em 1923, a Câmara Municipal de Ponte de Lima ligou o alto do monte à vila de Ponte de Lima, através de um ramal que derivava da estrada de Serdedelo, e fizeram-se obras de ajardinamento, destinadas a transformar o local num estância panorâmica onde se pudessem gozar alguns momentos de lazer. Achando-se a capela muito degradada, uma comissão de entusiastas, a que presidia o próprio Dr. Avelino Sampaio, que era também Presidente da Câmara e Conservador do Registo Civil, resolveram dotar a estância de nova capela, construída um pouco mais acima, adquirindo para o efeito e desmantelando a capela de S. Vicente Ferrer, da Casa da Boavista, de Moreira do Lima, datada de 1735, cujas pedras foram transportadas por uma grande carretada de lavradores (162 carros de bois!) das freguesias circundantes, em 1de Maio de 1926, e recolocadas de novo no monte das Santas, sob a direcção do mestre canteiro José Manuel Lopes, de tal modo que, em 22 de Setembro de 1929, podia receber a bênção do Arcebispo de Braga, D. Manuel Vieira de Matos, seguida de missa campal[34]. Assim se explica a estranheza da inscrição existente nas cartelas da fachada principal, que nada tem a ver com o local nem com a actual titular da capela. No mesmo dia, em procissão concelhia, foram também transportadas, desde a vila de Ponte de Lima, as novas imagens do Crucificado e de Santa Maria Madalena, assim como a de Santa Rita de Cássia e a da Senhora de Fátima, que em 1959 se partiu, vindo a ser substituída por uma Senhora da Soledade, levada da igreja paroquial, e atribuível ao século XVII, em terracota policromada. O retábulo foi composto por um marceneiro limiano, integrando quatro colunas e um quadro com a Visitação, entalhados em madeira e provenientes de um retábulo setecentista da igreja da Misericórdia de Ponte de Lima, que em tempos idos saíra das mãos do entalhador Miguel Coelho[35]. Para apoio aos visitantes, a Câmara Municipal construiu o edifício onde actualmente funciona o restaurante, que aproveitou na sua frente uma parte das colunas e da arcatura do antigo pátio da Misericórdia, desmontadas quanto se cortou ao meio o edifício para ligar ao rio a Rua Cardeal Saraiva.
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Restaurante de Santa Maria Madalena
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      Por falarmos de capelas, embora situada fora desta freguesia, merece uma referência o santuário da Senhora da Boa Morte, uma vez que, situado na freguesia de Correlhã, está ligado, pela sua fundação, a um cidadão de Fornelos, Luiz de Meireles de Lima Pacheco, da casa de Anquião, que, em 18 de Julho de 1695, outorgou uma escritura, em que doava, para a construção da capela e para uma missa anual em honra da Senhora da Boa Morte, duas propriedades situadas em Fornelos[36].
      No correr dos séculos, algumas famílias nobres construíram as suas casas de moradia nesta freguesia, movimento que teve o seu maior expoente ao longo do século XVIII. Quase todas desapareceram, e só raramente se encontram restos de uma escadaria ou de um portal que relembrem tempos passados. A mais antiga e talvez a mais importante dessas casas parece ter sido aquela que existiu no lugar onde na Idade Média se localizava a pousa do rico-homem, o Anquião. À falta de outras fontes, registamos o que vem escrito na Corografia Portuguesa[37]: “Aqui está a Casa do Paço de Anquião, que fundou de novo (ou lhe coube em quinhão) Dom Rodrigo Mello de Lima, primeiro Visconde, e a deu em dote a sua filha Dona Joanna de Mello, casando com seu parente João Gomes de Abreu, filho segundo de Leonel de Abreu, senhor de Regalados, e de sua segunda mulher Dona Maria de Noronha; sucedeu-lhe nesta casa e morgado seu filho Diogo Gomes de Abreu, e a este seu filho António de Abreu de Lima, pai de Pedro Gomes de Abreu, que a herdou; e por falecer sem sucessão seu filho primeiro António de Abreu de Lima, passou a casa e morgado ao segundo João Gomes de Abreu, que hoje a possue; e daqui descendem muitos fidalgos e nobres, não só deste Reino, mas no de Galiza”. Viria em segundo lugar outra casa, de que hoje nem sequer se conhece a localização: “Há mais nesta freguesia a nobre e antiga quinta de Barreiros, possuída sempre dos melhores da família dos Barros, a qual lograva Dona Maria de Barros, filha de Duarte de Barros, quando casou com Dom Francisco de Lima, filho segundo de Dom Diogo de Lima”; este “pela mesma via era bisneto do dito Visconde, de quem nasceu Dom Duarte de Lima, que o herdou, e casando com Dona Maria de Araújo e Vasconcelos, tiveram filha herdeira Dona Serafina de Lima, que vive casada com Rafael de Abreu de Lima, terceiro neto de Pedro Gomes de Abreu, senhor de Regalados e Valadares, e alcaide-mor de Lapela, e quinto neto do mesmo Visconde, que agora são senhores da dita Lapela, e quinto neto do mesmo Visconde, que agora são senhores da dita quinta”.
      De todas as casas desta freguesia a que se tornou mais célebre no exterior foi a Casa do Outeiro, por nela ter vivido os últimos anos da sua vida o médico, cirurgião e escritor Manuel Gomes de Lima Bezerra. Nascido em Santa Marinha de Arcozelo e tendo estudado em Lisboa e em Coimbra, trabalhou sobretudo no Porto, onde fundou a Real Academia Cirúrgica, a Academia Médica Portopolitana e a Real Academia Cirúrgica Portuense. Serviu de modelo aos fundadores da Sociedade Económica dos Bons Compatriotas Amigos do Bem Público, que em 1779 se criou em Ponte de Lima. Publicou diversas obras, sendo a mais conhecida Os Estrangeiros no Lima, de que apenas saíram dois volumes, em 1785 e 1791, ambos reeditados em 1992. Em 25 de Julho de 1788, data em que pediu autorização para se dizer missa no respectivo oratório, já tinha comprado a Quinta do Outeiro e nela passaria a viver, aí o referenciando uma carta de João Pedro Ribeiro, em 1 de Janeiro de 1798. Falecido em 1 de Março de 1806, de acordo com o seu testamento, foi sepultado na capela da Senhora da Luz, em Arcozelo, próxima do local onde tinha nascido.
      Também Júlio de Lemos por aqui viveu alguns dos momentos mais agradáveis da vida, especialmente em tempo de férias, na sua quinta do Cortinhal.
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      5. Uma freguesia para o futuro.
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      Bafejada pela excelente implantação geográfica, com boas águas e excelente exposição solar, a freguesia conheceu nos últimos séculos uma razoável prosperidade, baseada na agricultura e na floresta. Produzia bom vinho, cereais e azeite e uma considerável quantidade de fruta, hortícolas e linho. No século XX, chegou a ter em funcionamento, em simultâneo, quatro lagares de azeite, e uma serração de madeiras (com outra nas proximidades), várias moagens, a juntarem-se aos moinhos de água privados ou de consortes, e engenhos de preparação do linho. Uma parte do território é atravessada pelo rio Trovela (afluente do Lima), com abundantes águas, rico em trutas. Produziam-se nesta freguesia os melhores trabalhos de carpintaria e de tanoaria.
      Foram em grande parte recolhidos aqui os materiais de campo e especialmente as fotografias utilizadas na obra Tecnologia Tradicional Portuguesa – O Linho, publicada há alguns anos em Lisboa pelo Centro de Estudos de Etnologia[38].
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Trabalhos do linho, em Fornelos
(Ernesto Veiga de Oliveira e outros, Tecnologia Tradicional Portuguesa - o Linho, Lisboa, 1978)
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      A última grande obra em que esta freguesia se destaca é o Centro Social e Paroquial, com lar de idosos, centro de dia e jardim infantil, cuja construção se deve à iniciativa e ao entusiasmo do pároco, P. Manuel António de Azevedo, um raro caso de longevidade à frente duma paróquia, e ao generoso contributo dos paroquianos. Situa-se também dentro desta freguesia, num dos seus extremos, o Campo de Golfe de Santo Amaro.
      Longe nos conduziria a análise etimológica dos muitos topónimos que individualizam os vários lugares desta freguesia, pelo que concluiremos enunciando apenas os mais importantes: Badela, Barreiros, Bouçós, Calvário, Carrascal, Cerquinhos, Cortinhal, Crasto, Eidinhos, Felgueira, Gramosa, Juncainho, Oliveira, Outeiro, Outido, Póvoa, Souto, Torre, Torrente, Trelães, Urjal; Areal, Belmonte, Bouças, Cabaneiro, Chã de Mena, Corgo, Deveseira, Eido Velho, Gaiva, Grelido, Meiroal, Pias, Picarouba, Pousada, Sobreiro, Ventoso, Vide, Zenhas.
António Matos Reis

Nota - Este texto, excluídas, com a anuência do autor, as notas de rodapé e as passagens a cor, e pequenas modificações, foi publicado na revista “Limiana” (da Casa do Concelho de Ponte de Lima em Lisboa), ano III, n.º 2 (Abril de 2009), p. 37-42, ilustrada com fotografias do autor e de Amândio de Sousa Vieira.

[1] Cf. Martins Sarmento, Correspondência com o Abade de Miragaia, Revista de Guimarães 63 (1953), p. 255.
[2] Maria de Fátima da Silva Melo, Arqueologia do Concelho de Ponte de Lima, Lisboa, 1967 (policopiada), p. 39-40.
[3] Abel Viana, Justificação de um cadastro de monumentos arqueológicos para o estudo da arqueologia do Alto Minho, em Anuário de Viana, 1932, p. 163.
[4] Avelino de Jesus da Costa, O Bispo D. Pedro, vol. I, 2.ª ed., Braga, 2000, p. 518-520.
[5] Esta reconstituição difere parcialmente da que foi proposta por José Rosa Araújo, Caminhos Velhos e Pontes de Viana e Ponte de Lima, Viana do Castelo, 1962, págs. 96-106.
[6] Antonio Rodríguez Colmenero, Miliarios e outras inscricións viarias romanas do Noroeste hispánico, Santiago de Compostela, Consello da Cultura Galega, Sección de Patrimonio Histórico, 2004, p. 212.
[7] José Rosa Araújo, l. c., pág. 21.
[8] José Martins Capela, Miliários do Conventus Bracaraugustanus em Portugal, Porto, 1895, n.º 47, pág. 173; Emil Hübner, Corpus Inscriptionum Latinarum, Berlim, 1869-1892, n.º 4870.
[9] M. Capela, 1. c., n.º, 45, pág. 171; Hübner, 1. c., n.º 4874. Inscrição idêntica à deste, parcialmente conservada, podia ler-se noutro marco miliário achado na freguesia de Correlhã, fora do lugar de origem e partido ao meio, com as duas metades a servirem de esteios, numa vinha particular, depois levadas para o Museu Nacional de Arqueologia e Etnografia, de Lisboa. Assinalava a XXI milha, pelo que lhe devia corresponder como lugar de implantação a actual vila de Ponte de Lima, descrito no nosso estudo A Romanização no Concelho de Ponte de Lima, Ponte de Lima, 1978.
[10] Avelino de Jesus da Costa, O Bispo D. Pedro, vol. II, 2.ª ed., Braga, 2000, p. 152.
[11] Com mais pormenor, descrevemos este achado no artigo Mais alguns vestígios de templos medievais, em Mínia, Braga, 6[7] (1983), p. 156-169.
[12] A. D. B., Registo Geral, livro 2, fl. 280 v.º - 286 v.º. O registo em que se copiou o tombo foi lançado em 1590. A sigla A. D. B., que se repete nas notas seguintes, refere-se ao Arquivo Distrital de Braga. Temos referência de outro registo do tombo desta freguesia, que não chegámos a consultar: Torre do Tombo, Tombo da Comenda de S. Vicente de Fornelos, de que é comendador António de Melo e Castro – 1573, Bl 51-207
[13] Leitura duvidosa.
[14] Isto é, segundo entendemos, à paróquia ou às terras dependentes da igreja de Feitosa.
[15] A. D. B., Registo Geral, liv. 153, fls. 384 v.º.
[16] A. D. B., Registo Geral, liv. 137, fls. 35 v.º-36.
[17] A autorização para a benzer consta de uma provisão de 20 de Maio de 1783: A. D. B., Registo Geral, liv. 225, fls. 25-25v.
[18] Ao abrigo da disposição legal que então concedia aos que oferecessem o edifício da escola a colocação aí das sua filhas como professoras vitalícias.
[19] José Viriato Capela (coord.) e outros, As Freguesias do Distrito de Viana do Castelo nas Memórias Paroquiais de 1758, Museu de Monção e Universidade do Minho, 2005, p. 340.
[20] A. D. B., Registo Geral, liv. 108, fls. 35 v.º-43.
[21] A. D. B., Registo Geral, liv. 147, fls. 229-230.
[22] A. D. B., Registo Geral, liv. 112, fls. 198-199 v.º.
Agradeço a Eduardo Pires de Oliveira as referências que se seguem, relativas a documentos cuja cópia foi lançada nos livros do Registo Geral.
[23] A. D. B., Registo Geral, liv. 234, fls. 284 v.º.
[24] A. D. B., Registo Geral, liv. 239, fls. 126 v.º-130.
[25] A. D. B., Registo Geral, liv. 74, fls. 406-407.
[26] A. D. B., Registo Geral, liv. 48, fls. 337 v.º-338 v.º.
[27] A. D. B., Registo Geral, liv. 159, fls. 258 v.º-260
[28] A. D. B., Registo Geral, liv. 239, fls. 360v-363 v.º. Sentença cível de património da capela, de 19 de Outubro de 1812.
[29] A. D. B., Registo Geral, liv. 231, fls. 121 v.º-128 v.º.
[30] A. D. B., Registo Geral, liv. 137, fls. 35 v.º-36.
[31] P. António Carvalho da Costa, Corografia Portuguesa, tomo I, Lisboa, 1706.
[32] António Matos Reis, A capela de Santa Maria Madalena, em “O Anunciador das Feiras Nova”s, Ano XV, Ponte de Lima,1998, p. 39-44.
[33] Tudo isto consta de um Livro de Notas, isto é, de assentos notariais, do tabelião Lucas de Brito, da vila de Ponte de Lima, ao qual faltam as primeiras e as últimas páginas, mas que tem documentos elaborados entre 1621 e 1624: a fl. 44 e 44 v.o deste livro, pertencente ao Arquivo da Misericórdia de Ponte de Lima, encontra-se a «Doação que fez dona Inês de Magalhães dona vyuva à fabryqua da capela de Santa M.ª Madanela do monte das Santas».
[34] P. Manuel Dias, A Capela do Monte da Madalena em Ponte de Lima, em “O Anunciador das Feiras Novas”, ano 8 (1991), p. 25-27.
[35] António Matos Reis, A Santa Casa da Misericórdia de Ponte de Lima no passado e no presente, Ponte de Lima, 1997, p. 67.
[36] A. D. B., Nota do Tabelião Francisco Barbosa e Costa, dos coutos da Feitosa e Cabaços, anos de 1694-1696, fl. 221 vº.
[37] P. António Carvalho da Costa, Corografia Portuguesa, tomo I, Lisboa, 1706.
[38] Ernesto Veiga de Oliveira, Fernando Galhano e Benjamim Pereira, Tecnologia Tradicional Portuguesa – O Linho, Lisboa, Instituto Nacional de Investigação Científica, Centro de Estudos de Etnologia, 1978.
[39] Listagem mais vasta em António José Baptista, Toponímia de Ponte de Lima, Ponte de Lima, Câmara Municipal, 2001, p. 131-135.