De novo, a estrada romana...

Entre a Ponte Nova e a Posa 

       Nasci em Fornelos, freguesia atravessada desde tempos imemoriais por um antigo caminho, que ligava à estrada de Braga a Ponte de Lima as áreas setentrional e meridional, respectivamente, do actuais concelhos de Terras de Bouro e de Ponte da Barca, sendo também utilizado, por vezes, por moradores da freguesias de Beiral e do Couto de Gondufe. Da Boalhosa, este caminho descia pela margem esquerda (sul) do Trovela até ao Porto da Trave, também chamado Ponte da Trave, onde passava à margem direita (norte). Daí, pela Gramosa, podia descer-se até à Ponte Nova, especialmente quando os viajantes (sobretudo os de Boalhosa, Beiral e Gondufe) pretendiam continuar na direcção de Braga, ou seguir a pé pelo meio da freguesia de Fornelos, na direcção da vila de Ponte de Lima, designadamente nos dias de feira.
       O caminho, que fazia a ligação entre Braga e Ponte de Lima, coincidia parcialmente com a estrada medieval e, mais ainda, com a antiga via romana, e veio a determinar, pelo sul, os limites desta freguesia de Fornelos com a de Rebordões-Souto. Com efeito, entre estas duas freguesias, com possíveis variantes, pendentes, no correr dos tempos, da afluência dos caminhantes procedentes de outras vias, correria a estrada romana. Em muitos trechos perdeu-se-lhe o rasto, por não ser pavimentada e porque a nova estrada, aberta no século XIX, permitiu que a antiga fosse abandonada ou esquecida e mesmo, em parte, absorvida pelos campos de cultivo e pelos eidos das habitações.
       São esses alguns dos motivos porque, mesmo na área que me é mais familiar, se torna difícil reconstituir o seu trajecto. No espaço geográfico a sul da vila de Ponte de Lima, e zonas limítrofes, não sobreviveram pontes com indiscutível aparelho romano, nem outros monumentos de vulto, não há calçadas da época e os marcos miliários podem ser e de facto muitas vezes foram deslocados para mais ou menos longe do seu primitivo lugar de implantação.
       De qualquer modo, poder-se-á definir, pelo menos, o que, em termos actuais, se costuma designar como um canal de passagem, tendo em conta as condições topográficas, designadamente as curvas de nível do terreno e a consistência do solo, assim como a existência de elementos arqueológicos sugestivos em áreas próximas e até mesmo o uso tradicional desses canais como espaços de circulação. A ponderação destes factores está por certo subjacente, de um ou de outro modo, ao facto de os autores se manifestarem geralmente unânimes em relação ao mais antigo canal de circulação entre Braga e Tui e em especial à sua travessia no concelho de Ponte de Lima. O mesmo não se poderá dizer, no entanto, em relação aos locais exactos por onde passaria a estrada.
       Quando, em 1974, procedi à investigação de que resultou a publicação do estudo A Romanização no Concelho de Ponte de Lima (Ponte de Lima, 1978), posteriormente integrado, como breves achegas, no livro Ponte de Lima no Tempo e no Espaço, editado em 2000 pela Câmara Municipal, um dos maiores problemas que se me colocou foi, de facto, o da reconstituição do traçado da via romana entre Braga e Tui, especialmente nos trechos que dizem respeito ao concelho de Ponte de Lima. Aceitando provisoriamente como adquirido o traçado proposto por Carlos Alberto Ferreira de Almeida (Vias Medievais, Porto 1968, pág. 25) para o troço que descia de Braga até ao rio Cávado e daí até ao extremo do concelho de Vila Verde, cuja definição ainda hoje não é inteiramente pacífica, adoptei, para o concelho de Ponte de Lima, a reconstituição proposta por José Rosa de Araújo (Caminhos Velhos…, Viana do Castelo, 1962, pág. 96-106).
       Por aí me quedei até agora, embora no meu espírito continuassem a pairar muitas dúvidas, que no conjunto ainda se não dissiparam. Assim permaneceria, se não verificasse que, talvez sob a pressão das circunstâncias, designadamente por haver necessidade de apresentar trabalho para justificar os apoios monetários facultados pela Comunidade Europeia, para este projecto, se davam, com alguma ligeireza, todas as dúvidas por resolvidas, ao colocar as tabuletas que deveriam assinalar os lugares de passagem da chamada Via XIX em território limiano.
       A situação que despertou a minha atenção refere-se a um local onde já passei milhares de vezes, desde os tempos da minha infância. Na estrada (EN 537), que liga a estrada nacional Ponte de Lima-Braga (EN 201) à igreja paroquial de Fornelos, está assinalado como desembocadura da via romana um caminho que vem do meio ou, melhor, dizendo, do extremo dos campos de cultivo e que nestes se extingue. E, como se fosse explicável um ziguezague sem qualquer acidente geográfico que o motivasse, está igualmente assinalada, uns metros mais abaixo, a continuação desse caminho num outro que atravessa a freguesia na meia de baixo (a metade norte). Ora a realidade era a seguinte: o velho caminho (a possível estrada romana), actualmente tomado pelas silvas, vindo do sul, saía mais abaixo, depois de contornar a Quinta do Sol.
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Percurso da estrada romana entre os lugares do Carrão e da Chão de Mena. A encarnado, as setas correspondentes aos sítios onde estão as tabuletas com a indicação errada dos locais onde desembocaria e continuaria a estrada romana (o traço amarelo, em ziguezague, corresponderia ao traçado anormal que as setas assinalam). A linha tracejada a encarnado (--+---+---+--), nos mapas do Município, assinala pretensamente os limites das freguesias.

À procura da verdade, tentemos, por conseguinte, reconstituir a passagem da via romana na freguesia de Fornelos. Noutra ocasião, se houver oportunidade, estudaremos o seu traçado pelo menos no concelho de Ponte de Lima, se não todo o percurso de Braga até Valença. Trata-se, mesmo assim, de uma reconstituição hipotética, embora a consideremos a mais provável de todas. Conjugaremos, para lá chegar, alguns factores que, no seu conjunto, alicerçam as nossas conclusões: os achados arqueológicos, a documentação medieval ou mesmo posterior, até ao século XVIII, e a existência de um caminho antigo, pelo menos medieval, que já acima referimos e se manteve em uso, em grande parte da sua extensão, até ao lançamento da estrada moderna e foi utilizado como linha de demarcação entre as duas freguesias de Fornelos e Rebordões-Souto. Deste caminho se conservaram alguns trechos, outros ficaram debaixo do pavimento da nova estrada, quando com ela se cruzavam, ou foram englobados nas propriedades particulares, acrescentados às terras de cultivo ou ao assento das habitações.
       Vinda dos lados de Braga, depois de atravessar a Queijada, a Via Romana, mal entrava em Fornelos, atravessava a ponte sobre o rio Trovela. A antiga ponte podia ou não ser de pedra. A expressão Ponte Nova, embora não exija necessariamente, sugere, com toda a probabilidade, a existência, no local ou nas proximidades, de uma ponte velha, arruinada com o passar do tempo. Curiosamente se diga que essa ponte nova é hoje a mais antiga das duas que existem no lugar. Já em 1258 (na inquirição relativa à freguesia de Anais e em algumas outras) era presumivelmente este o lugar referido com essa designação: Ponte Nova! A passagem da via originou a formação, nas proximidades, de um aglomerado habitacional que está na origem do topónimo Póvoa.
       Subindo da velha ponte, o leito da antiga via ainda é patente num dos cômoros da propriedade, situada a norte da estrada, que pertenceu ao comerciante pontelimense Costa Brito; segue depois, contígua, do lado norte, às casas que bordejam a EN 201, até chegar ao Carrão (será que o topónimo lhe aludia?), diluída nos campos de cultivo, atravessando então a ribeira de Folinho, a uma ou duas dezenas de metros da referida estrada nacional. Quando, a seguir aos campos da outra margem, se eleva o nível do terreno, a antiga via reaparece entre as herdades da família Vieira Antunes, bordeja a Quinta do Sol e, passando, a norte, mais uma vez contígua a algumas casas, chega à tal estrada de acesso à igreja paroquial de Fornelos.
       Já bastante truncado, provirá desta área um daqueles marcos miliários que os romanos colocavam nas estradas para assinalar as distâncias a percorrer ou já percorridas. Foi cortado e mutilado para servir de peso de lagar. Recolhido no antigo passal de Fornelos (propriedade que hoje pertence ao Eng. Gaspar Castro), que se estendia da igreja até à via ou às suas proximidades, ninguém sabe ao certo qual era o seu exacto lugar de origem. Pelo que resta da inscrição, não é possível atinar com a milha assinalada, mas refere-se ao imperador Maximino I, podendo datar-se de à volta do ano de 237, uma vez que será coetâneo de outros marcos que assinalam o seu quinto império. 
       A antiga via continuava em frente, do outro lado da estrada (EN 537), mas o pequeno trecho que se seguia, a poente, desapareceu, no século XX, em consequência do arroteamento das terras que atravessava. Volta porém a aparecer mais à frente, passando por trás das casas existentes no lugar da Chã de Mena e desembocava em seguida na EN 201, cujo leito cortava em diagonal, prosseguindo do outro lado.
       Ao atingir o nível mais alto, como a actual estrada, e no começo da descida definitiva para Ponte de Lima, a seguir às terras de cultivo, ainda se vêem, no meio de um trecho de pinhal, os sinais de uma espécie de pequena congosta, que lhe correspondia. Passava depois no terreno onde assentam duas casas recentes (as do Artur Martins e do Amândio Corredoura) e na terceira, a mais antiga (a antiga venda do Corredoura), sabe-se mesmo que deixava a sul o terreno onde assenta a cozinha e a norte aquele onde se ergue o resto da casa.
       De novo cruzava em diagonal a EN 201, e, passando por trás de um casa de rés-do-chão (do piloto aviador Inácio do Lago Passos e das suas irmãs), no ângulo formado com o caminho que desce da aldeia, afastava-se um pouco mais da EN 201, para contornar a quinta de Sandilhão. O tombo de Fornelos de 1552, ao descrever os limites da freguesia, refere-se à via pública que ia ter à cruz de Sandilhão (A. D. B., Livro Primeiro do Registo Geral, fl. 287).
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Reconstituição da travessia da via romana, no limite entre as freguesias de Fornelos, de um lado, e as de Rebordões-Souto e Rebordões-Santa Maria, do outro (a amarelo: possível variante).
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       Depois perdemos-lhe o rasto, mas não restam dúvidas de que atravessava de novo a EN 201, acompanhando o regato de Vilar, que depois transpunha, e prosseguia, amoldando-se às curvas de nível, pelo meio dos terrenos que hoje se distribuem pelos campos de cultivo (e algumas construções muito recentes), até chegar à laje da Posa, onde confluía outro antigo caminho, ao fundo do Campo de Santo Amaro, mas um pouco afastado do lugar onde viria a ser implantada a capela.
       O topónimo Posa não passa despercebido a quem se ocupa das vias romanas e medievais. Pausa ou pousa é o mesmo que paragem. Com essa palavra designava-se o lugar onde se parava para retemperar as forças, proceder as reparações nas carruagens, fazer mudas de cavalos e recolher provisões. Posa seria a mansio ou a statio que antecedia a passagem do Lima.
       A importância do local justifica a existência de miliários, colunas de pedra com inscrições destinadas a informar os viandantes das distâncias percorridas ou a percorrer, ao mesmo tempo que recordavam o nome dos governantes e lisonjeavam a sua prosápia.
       Um desses miliários tem, entre os demais, a singularidade de exibir uma forma troncocónica, singularidade que aumentou quando lhe sobrepuseram o actual chapéu de remate, depois que, em 1641, do Campo de Santo Amaro, onde se encontrava, numa área limítrofe com a freguesia da Feitosa, foi levado, para o solar de Bertiandos. A inscrição latina, que recobre o fuste, traduzida, refere: “O imperador César Caio Júlio Vero Maximino, Pio, Feliz, Augusto, Germânico Máximo, Dácico Máximo, Sarmático Máximo, Pontífice Máximo, cinco vezes tribuno, cinco vezes imperador, Pai da Pátria, cônsul, procônsul, e Caio Júlio Vero Máximo, Nobilíssimo César, Germânico Máximo, Dácico Máximo, Sarmático Máximo, Príncipe da Juventude, Filho do Senhor Nosso Imperador Caio Júlio Vero Maximino, Pio, Feliz, Augusto, restauraram as vias e pontes arruinadas com a passagem do tempo, sendo encarregado Quinto Décio, legado de Augusto, propretor. A 18 milhas de Braga”. De acordo com esta inscrição, o miliário foi, por conseguinte, erigido no tempo do imperador Maximino I (173-238) e concretamente na primeira metade do ano de 237, que corresponde ao seu “quinto império”, mencionado na epígrafe.
       Nas proximidades, e, mais concretamente, a sul do caminho público do lugar da Posa, numa propriedade da família do Conde da Aurora, encontrou-se também a parcela de outro marco miliário, muito gasta, podendo deduzir-se, das poucas letras que restavam, que datava da primeira metade do século IV, uma vez que a inscrição se referia ao imperador Dalmácio, filho de Júlio Constâncio e, por conseguinte, sobrinho de Constantino Magno, após cuja morte foi assassinado.
       Da Posa, a via romana seguiria pelo meio da freguesia da Feitosa, indo ter ao cimo da rua de Merim, que era o único local onde há alguns anos se viam (esperemos que ainda hoje se vejam) restos da antiga calçada. Mas como o nosso propósito era apenas o de tratar do percurso relativo à freguesia de Fornelos, damos aqui por terminada esta pequena viagem pelos caminhos do tempo do Império Romano. 
António Matos Reis

Este texto foi publicado no "Anunciador das Feiras Novas" do corrente ano de 2011. Com breves correcções, coloca-se agora ao alcance de todos os leitores. Acrescentaram-se os mapas, elaborados sobre a fotografia aérea do SIG (Câmara Municipal de Ponte de Lima) e suprimiram-se as duas fotografias de marcos miliários, que já acompanham o texto publicado anteriormente neste blogue.