No monte das Santas



 
SANTA MARIA MADALENA
                                                                                                    
                                                                                 
 
       Sobranceiro à vila de Ponte de Lima, ergue-se o Monte das Santas, colina de moderada altitude, suficiente para nos proporcionar uma deslumbrante panorâmica sobre a antiga vila e uma grande parte do vale do Lima, desde as serras por onde corre mais apertado, até à extensa veiga por onde vai serpenteando até se diluir no oceano. O religioso nome deste cerro é atribuído, na lendária tradição local, a umas piedosas mulheres que em penitência aí teriam vivido noutros tempos. Como em todas as lendas há um remoto fundo de verdade, apontam os estudiosos para existência de ruínas castrejas, que as obras efectuadas no século XX quase totalmente fizeram desaparecer. Os devotos locais, acolhendo as inconscientes sugestões da lenda, aí fizeram erigir uma pequena capela, dedicada não a essas santas, mas, em concreto, a uma santa, Maria Madalena, e naturalmente, ao Cristo que ela amou intensamente. Veio daí o nome com que na actualidade é conhecido o Monte de Santa Maria Madalena, ou, simplificando, o Monte da Madalena.

 Panorama do vale do Lima, visto do alto do monte de Santa Maria Madalena

       Na primeira metade do século XX, um grupo de pontelimeses, entusiasmados com a amenidade do local e com a beleza da paisagem que dele se vislumbra, resolveu substituir por outra a velha capela e transformar  o recinto envolvente num aprazível jardim, onde fosse agradável jornadear, e construir um edifício de apoio, que pomposamente designaram como hotel, ainda que nunca tenha funcionado a esse nível e apenas nas últimas décadas do mesmo século se tenha transformado em restaurante, no piso superior, e café-bar, no rés-do-chão. Nele foram utilizadas, em parte, as colunas e arcadas setecentistas do claustro interior da antiga Misericórdia, esventrada para dar passagem à Rua Cardeal Saraiva. O facto de a maior parte daqueles entusiastas residir em Ponte de Lima fez com que durante muito tempo a estância fosse tratada como se estivesse dentro dos limites da vila, ou, com alguma concessão, da paróquia que lhe é imediatamente contígua, a de S. Bento de Arca.

 Outra panorâmica do vale do Lima, visto de Santa Maria Madalena, há cerca de 40 anos

       Num interessante artigo publicado a páginas 25 d 'O Anunciador das Feiras Novas de 1991, da autoria do P.e Manuel Gomes Dias, faz-se uma breve história da capela de Santa Maria Madalena, onde, a par da referência aos tempos mais antigos, se evoca a sua reconstrução na primeira metade do século, utizando a pedraria da capela de S. Vicente Ferrer (a que alude a inscrição da frontaria), comprada aos proprietários da casa da Boavista, de Moreira de Lima, e transportada para o monte das Santas, no dia 1 de Maio de 1926, em 162 carros de bois!
       Quando fazia as pesquisas que me permitiram recolher os dados necessários para a elaboração da monografia da Misericórdia de Ponte de Lima, que recentemente foi publicada, encontrei novos elementos que nos esclarecem sobre as origens da capela.
       Num livro de notas (isto é, de assentos notariais) do tabelião Lucas de Brito[1], da vila de Ponte de Lima, ao qual faltam as primeiras e as últimas páginas, mas que tem documentos elaborados entre 1621 e 1624, a fl. 44 e 44 v.o encontra-se a «Doação que fez dona Inês de Magalhães dona vyuva a fabryqua da capela de Santa M.ª Madanela do monte das Santas».
       Através desse auto ficamos a saber que a primeira capela tinha foi mandada edificar pela já referida D. Inês de Magalhães, viuva de João de Magalhães de Meneses, proprietária da quinta da Rasca, situada na freguesia de S. Mamede de Arca, contígua à vila de Ponte de Lima, num terreno localizado no monte das Santas, mas situado no prolongamento da mesma quinta, razão pela qual se supunha então pertencer à mesma freguesia de Arca.

Actual capela de Santa Maria Madalena

       Pelo teor do documento se vê que a capela era de construção recente, quando a fundadora já estava viúva. Para garantir a sobrevivência da pequena ermida e a realização de alguns actos de culto, D. Inês dota-a com um dos maiores campos da sua quinta da Rasca.
       Falta o canto inferior esquerdo da folha, pelo que, não sendo possível transcrever na íntegra o documento, procuraremos fazê-lo na medida do possível:

       Saybam quoantos este publico estromento de obrigasão e doasão d'oje em dia pra todo o sempre virem como no ano do nasimento de Noso Senhor Jhesus Christo de myl e seisentos he vymte e dous anos aos dezaseis dias do mês d'abril do dito ano nesta vyla de Pomte de Lyma e pouzadas de dona Inês de Magalhais dona vyuva que ficou de Joane de Magalhais de Menezes fidalguo da Caza de Sua Magestade que são nela aomde heu Lucas de Brito tabeliam na dita vyla fuy he asyy em mynha prezensa e das testemunhas ao diante nomeadas pareseo ha dita dona Inês de Magalhais pesoa reconhesida por mim tabeliam e por ela foi dito e dise que hela junto a sua quymta da Rasqua que ten sita na freguesia de Sam Mamede d Arqua do termo desta vila fizera hũa irmida novamente no monte das Santa da dita freguesia por sua devasão da voquação de Santa Maria Madanela e ora ela dita dona Inês de Magalhais fizera a sua custa a dita irmida he não tinha fabriqua da dita capela que he da dita dona Inês de Magalhães fizera na forma da sobredita he obriguava a fabriqua da dita irmida o seu quampo da Fomte junto a posa que está sito dentro na dita sua quimta da Rasqua he he dizimo a Deos con sua agoa de rega e leva [rá][2] de semeadura des alqueyres de triguo [que ha de] render en cada hum ano sasen[ta alqueir]es de pam tersado milho e sem[teio e confronta do] norte nasente e poente he [sul ... com] todas as mais propriada[des ... ....  da dita quin]ta e devezas con ho quam[po .... .... ...] de riba pelo que pelos [... ... ... ...] dito quampo seja a dita [... ... ... ...]da do que lhe for nesesario [... ... ... ...] do mundo por quan[to] pra iso hobriguava he ipotiquava ho dito quampo e se obriguava por sua pesoa he bēnes a senpre fazer a dita ipotequa <boa>[3] e a nunqua ir comtra esa hobrigasão e fabriqua he era comtente que neste modo tomase pose do dito quampo o reverendo prior Miguel Vyegas da Silva da igreja matris desta vila de quem he aneyxa a dita pra que nunqua aja duvida nesta hobrigasão e eu tabeliam como pesoa publiqua estepulante e aseytante a estepuley e aseytey em nome da dita irmida e pra ela pedy os trellados nesesarios e ela dita dona Inês de Magalhais ho mandou dar deste teor e asi ho dise he houtorgou e asinou ela dita dona Inês de Magalhais estamdo presentes por testemunhas a todo o Padre Antonio d Araujo benefisiado na igreja matris desta vila e João Pachequo mansebo solteyro morador nesta vila he a sobredita pose podera outrosi tomar a Padre António Francisco cura na dita igreja de Sam Mamede en nome da dita capela he irmada[4] . Lucas de Brito tabeliam ho escrevi. Dis antrelinha “boa”. Dito tabeliam a escrevi.
       [Assinaturas:] Dona Inês de Magalhais
       João Pacheco d’Amorim     António de Araujo

       No Livro das Capelas e Obrigações desta Casa anno de 1629, embora encadernado dentro de uma capa que diz Capelas e Obrigações desta Casa anno de 1575, regista-se que «Tem esta Caza obrigação mandar dizer duas missas todos o anos per tenção de dona Inês de Magalhães hũa dellas na sua ermida da Magdanella das Santas na freg.ª de Fornellos e outra na Igr.ª desta S.ta Caza da Mïa en dia de São João Bautista a das Santas en dia da Magdanella». Em letra diferente, foi depois acrescentado, na mesma página, o seguinte: «Tem mais obriguação de mandar dizer esta casa outra missa resada por tenção da dita dona Inês de Mag.es na dita ermida da Magdanela na ermida que está nas Santas em dia da dita Mgdanella per o que deu João P.dro de Morim a esta casa dez myl r. A 23 de Maio de 672»
       Madanela ou Magdanela era o modo como então se dizia e escrevia Madalena. Ficamos a saber que a capela, já então existente, localizada no monte das Santas (topónimo que ainda se conserva), se considerava situada na freguesia de Fornelos.

Edifício do "hotel" de Santa Maria Madalena

       No artigo de O Anunciador das Feiras Novas já mencionado, informa o nosso ilustre amigo e conterrâneo P.e Manuel Dias que no altar-mor se reutilizaram alguns elementos de talha que estavam guardadas num armazém da Misericórdia. Trata-se das peças sobreviventes do que terá sido um excelente retábulo em talha do estilo chamado barroco nacional, executado para a capela-mor da igreja da Misericórdia por Miguel Coelho, um dos melhores entalhadores das primeiras décadas do século XVIII, a que já fizemos referência no livro A Santa Casa da Misericórdia de Ponte de Lima no passado e no presente.

       Miguel Coelho era um artista consumado, mestre exímio da arte de entalhar. Nascido em Barcelos, em 1671, as primeiras obras documentadas que executou foram, em 1709, dois retábulos para a Igreja do Senhor da Cruz, da sua terra natal, para a qual viria a esculpir dois anjos tocheiros. Em 1718, contratou o retábulo de Santa Ana, na igreja do colégio de S. Lourenço. do Porto. Em 1720 fez, para a de Braga, os retábulos do Santo Homem Bom e de S. Francisco, perdidos; em 1721, o retábulo da capela-mor da igreja de S. Vicente, também em Braga; em 1724, o frontal do altar-mor do Bom Jesus, de Barcelos; em 1727, o retábulo da igreja paroquial de S. João Baptista, em Ponte da Barca; em 1729, o retábulo do Senhor Jesus, agora chamado da Senhora das Dores, da igreja matriz de Ponte de Lima. Em 1732 iniciou a obra de talha dos altares laterais da igeja da Misericórdia de Caminha. Executará, ainda em 1742, a talha da capela-mor de Santa Clara de Guimarães e possivelmente o retábulo da capela-mor da Misericórdia de Monção. Acabou por morrer pobre, em 2 de Julho de 1743 «com todos os sacramentos Miguel Coelho ensablador e da Vila de Barcelos», e ser sepultado em Ponte de Lima.
 . 
Imagem de Santa Maria Madalena, 
que actualmente se venera na capela do Monte das Santas

A festa de Santa Maria Madalena, em que se juntam elementos religiosos e profanos, celebra-se todos os anos no dia 22 de Julho, que lhe está reservado no calendário litúrgico da Igreja Católica.
Mas, ainda há algumas décadas, a capela era o destino de outra manifestação religiosa, os clamores, que se faziam no verão, quando os anos se revelavam particularmente secos e as culturas agrícolas definhavam por carência da água de rega e das chuvas. Realizava-se então um cortejo – o “clamor” – que partia da igreja paroquial (de Fornelos, embora, mais raramente, também de outras paróquias) em direcção à capela do Monte das Santas, durante o qual, de permeio com outras orações, especialmente o terço mariano e a ladainha, se repetia, com frequência, um cântico tradicional para essa ocasião. Era convicção geral que, passados alguns dias, a chuvinha benfazeja caía dos céus sobre a terra ressequida.
Para ficar para a história, recolhemos e deixamos aqui esse cântico, com a letra e a notação musical.


[1] Por razões que não somos capazes de explicar, este livro foi parar ao Arquivo da Misericórdia, instituição a que, de todos os que nele estão exarados, apenas este documento diz respeito.
[2] Colocam-se entre parêntesis rectos as palavras que é possível reconstituir, ou, quando isso não é possível, os ponteados correspondentes à parte inexistente, por já faltar um pedaço da folha.
[3] Palavra escrita na entrelinha.
[4] Sic, lapso, por «irmida».

A propósito de vinho...

                                    Uma lagareta ao ar livre, ainda em uso no século XIX
                                    na freguesia de Fornelos, concelho de Ponte de Lima
  
Nasci na freguesia de Fornelos, situada, conforme já lembrámos,a sul de Ponte de Lima, concelho de que faz parte, iniciando-se a cerca de um quilómetro da vila, exatamente com o Campo de Golfe de Santo Amaro, e prolongando-se ao longo de quase sete quilómetros, até chegar à da Queijada. O seu território, pela banda do poente, era bordejado pela velha estrada romana, de que chegaram aos nossos dias dois marcos miliários, e hoje é atravessado pela estrada nacional que liga Ponte de Lima a Braga e cortado em diagonal, na sua metade norte (a “meia de baixo”), pela nova autoestrada. Na metade sul (a “meia de cima”), correm as águas do acidentado Trovela, de saborosas trutas, marcado por açudes, de onde nascem levadas para a rega dos campos, e, em fase de total desaparecimento, moinhos, engenhos de serração e lagares. Pela margem esquerda do Trovela seguia um velho caminho que, noutros tempos, galgada a serra, ligava a Terras de Bouro, a Amares e a outras localidades do interior, até ao Barroso, desde o século XIX dividido entre Boticas e Montalegre, e a Chaves.
Os meus verdes anos tiveram como cenário esta multifacetada paisagem, cujo apelo ressoa nos meus ouvidos, como no poema de Diogo Bernardes, que certamente calcorreou alguns dos seus caminhos quando, vindo das terras da Nóbrega, ia visitar o grande mestre e amigo Sá de Miranda, no plácido “refúgio” de Duas Igrejas:
Llamam por mi las fuentes y los rios,
Los prados y los bosques de mi tierra,
Todo valle me llama, toda sierra,
Por do gastè los tiernos anos mios.
(Diogo Bernardes, Rimas Várias Flores do Lima,
                        soneto LXIX)

     Propondo-me apresentar, no II Congresso Internacional “Vinha e Vinhos”, um estudo diferente da cerrada análise de antiga documentação em que baseei as comunicações de anos anteriores[1], encontrei nesta freguesia ligada às minhas origens o tema da presente comunicação: “Uma lagareta ao ar livre, ainda em uso no século XIX, numa freguesia do concelho de Ponte de Lima”.

*  *  *
Nas Inquirições ordenadas por D. Afonso III, em 1258, ao chegar à freguesia de Fornelos, não se faz referência a qualquer renda ou tributo relacionado com a cultura do vinho, embora fosse provável que já aí se praticasse. Curiosamente, o vinho é mencionado genericamente no foral manuelino de Penela (julgado de que então a freguesia ainda fazia parte), em relação ao reguengo da Ribeira de Trovela, atualmente a área da freguesia onde a vinha é mais escassa. Se o havia na ribeira de Trovela, com maior razão o haveria noutros lugares. Com o andar dos tempos, a vinha estender-se-ia a toda a freguesia, espalhando-se pelos terrenos mais altos e pelas encostas, devido à situação geográfica, voltadas a sul, com excelente exposição solar, o que possibilitava a produção de vinho de excelente qualidade. Aliás, a vinha no século XVI teria aqui um grande incremento, como revela o Tombo da freguesia, cuja primeira versão é de 1552[2].
Na altura das vindimas e de outros trabalhos agrícolas, acompanhei muitas vezes os meus familiares a uma propriedade que os meus avós maternos receberam em doação de uma pessoa amiga, a “tia Maria viúva”, a qual se designava como o “eido da Torre”. Era assim que então se chamava, apesar de oficialmente não pertencer ao lugar da Torre mas sim ao do Juncainho. O “eido da Torre” apresentava o aspeto de em tempos idos fazer parte de uma herdade ainda maior, toda ela rodeada pelo caminho público, como se fosse uma ilha. Com o andar do tempo, essa herdade ter-se-á fragmentado, repartida por vários herdeiros.


 Um aspecto do eido da Torre, onde está bem presente a cultura da vinha

No eido despertou a minha atenção uma curiosa lápide que, a poucos metros da antiga casa de habitação, se acostava a uma oliveira, por sua vez, a meia altura do tronco, perfurada por um orifício retangular, que, vim a entender depois, se destinaria ao encaixe de uma trave. A oliveira, que nessa altura, apesar da cicatriz, produzia azeitona como as outras, foi removida por ocasião de obras posteriormente levadas a cabo nas imediações. 
Do conjunto sobrevive ainda a lápide de granito, cuja fotografia se apresenta. Mede cerca de 1,40 m., de comprimento, por cerca de 1 m., na parte mais larga, exibindo um perfil e umas dimensões um tanto irregulares, como a fotografia evidencia. Corre a toda a sua volta um rebordo, que já nos tempos da minha infância estava remendado, para compensar uma falha, ocorrida nos tempos do seu fabrico ou em movimentações posteriores [Estampa 4]. Na parte mais estreita, onde, em correspondência com a inclinação com que estava colocada, o rebordo é também mais alto, foi cavada a abertura, como logo se vê, destinada a dar escoamento ao líquido extraído das uvas.
 

 Dois aspectos da lagareta rudimentar existente no eido da Torre
De facto, não é difícil concluir que estamos perante uma pequena lagareta, cuja função era a de prensar as uvas esmagadas após a vindima. O “eido” a que pertence localiza-se num terreno que se pode considerar plano, relativamente alteado em relação ao meio circundante, carente de acesso a correntes de água, proporcionando apenas a realização de culturas de sequeiro; no rebordo da herdade havia latadas, que se mantêm no presente, assim como na área onde foi construída a casa onde reside o atual proprietário. Incluindo algumas uvas excelentes da casta loureiro, as que aí se colhiam davam ótimo vinho.
Numa das fases do respetivo fabrico, utilizar-se-ia esta lagareta rústica, a meio caminho entre as mais rudimentares congéneres da proto-história e os lagares mais evoluídos introduzidos pelos romanos, bem conhecidos através da descrição feita por Catão no II século a. C., no De Rústica, por vezes designado como De Agricultura[3]. Os lagares romanos, destinados às grandes explorações agrárias da época, eram equipamentos pesados, integralmente construídos em pedra e grossas traves de madeira e com aplicação de cordas, e têm sido objeto de algumas reconstituições na atualidade. 

 
    Reconstituição de um lagar romano, em França       
(Mas de Toureles, Beaucaise)      

De mais pequena dimensão, a lagareta aproxima-se mais desse do que de um novo tipo de lagares – os lagares de parafuso – inventados ainda na época romana, mas num período mais tardio, e resultantes da aplicação de um aperfeiçoamento exigido se não pelo afuloamento dos tecidos, talvez pelos lagares de azeite, cuja extração é mais lenta, mas o seu uso no fabrico do vinho é atestado em miniaturas do começo da Idade Média e manteve-se até ao século XX: a pressão transmitida pela alavanca de madeira era, de facto, obtida através de um grosso parafuso nela encaixado e agarrado a um peso, feito de pedra e suspenso ou preso no solo, como sucedia nos grandes lagares da Borgonha.
Na lagareta do “eido da Torre” recorria-se à pressão transmitida por uma trave sobre uma tampa colocada em cima das uvas, mas sem utilizar o parafuso. Num dos extremos, a alavanca fixava-se no orifício aberto no tronco da oliveira; do outro, se não se recorria unicamente à força braçal, suspender-se-ia um peso, com a provável ajuda de uma corda. É impossível dizer se o orifício do encaixe foi aberto numa oliveira existente e em produção normal, ou num tronco de oliveira então espetado na terra, que depois ganhou raízes e cresceu, lançando ramos e dando fruto, como é normal acontecer nestas árvores, mesmo depois de estarem arrancadas da terra e cortadas durante longo tempo.
Lagaretas funcionando de modo semelhante utilizaram-se no mundo mediterrânico, até épocas bem próximas da nossa, colocadas ao ar livre ou abrigadas no interior, como se pode observar num exemplo recolhido na Sicília. 



 Lagareta primitiva recolhida em Buscemi, Palazzolo, na Sicília 
(do nosso lado direito, na fotografia)

No nosso eido, observámos ainda uma pedra rude, também de granito, que pode ter servido como peso. Como este não seria muito, devido às limitadas dimensões da pedra, é possível que esta tenha dado lugar a outra, de xisto, com maiores dimensões, dotada também de um orifício cuidadosamente aberto, que serviria para introduzir e prender a corda com que se amarrava à trave. Note-se que a rocha prevalecente na localidade é o xisto, pelo que se o granito da lagareta, por causa da dureza que exigia a sua função, veio de mais longe, o mesmo se não observava em relação ao xisto. 

 
Pesos: um de granito (à nossa esquerda) e outro de xisto (à nossa direira) existentes no eido da Torrre



De granito, há muito deslocada para outras funções e para outro local, era também uma pia, que pode ter sido usada para recolher o líquido resultante da espremedura das uvas, no momento em que escorria da lagareta.

 Pia de granito proveniente do eido da Torre

Antes de terminar, uma última questão se coloca, entre outras que serão possíveis: em que data se fez e começou a usar esta lagareta?
O único elemento que nos podia ajudar a estabelecer uma cronologia para as suas origens era a oliveira a que esteva acoplada. Como essa oliveira já não existe, resta-nos olhar para as que ainda se mantêm na herdade, uma vez que, na nossa memória, o tamanho destas árvores era semelhante. Considerando o tempo que levam a desenvolver-se e a respetiva espessura, somos levados a pensar que datarão de meados do século XVIII, mais década menos década. Quando a propriedade veio ter à minha família, por volta de 1930, já não era utilizada, nem se recolheu memória de quando tinha deixado de o ser.
Assim fica registado aquilo que conseguimos saber acerca desta humilde lagareta rústica, onde por certo, ao menos ao longo de um século, se espremeram uvas, cujo vinho, em moderada quantidade, devia ser, no entanto, de boa qualidade, como aquele que no tempo da minha juventude aí se colhia.
2012.10.05
António Matos Reis


[1]Vinho e vinhedos nas terras do Alto Minho na Idade Média”, no Congresso Internacional “Vinho Verde – História, Sociedade, Economia e Património”, Maia, 19-21 de outubro de 2007, publicado em  Atas do I Congresso Internacional de Vinho Verde, Porto, 2010, pág.21-36.; “A vinha e o vinho nas origens dos municípios”, no I Congresso Internacional Vinhas e Vinhos, publicado em  Atas do I Congresso Internacional Vinhas e Vinhos, Câmara Municipal de Viana do Castelo, pág. 63-73.
[2] A. D. B. – Registo Geral, livro 2, fl. 280 v.º - 286 v.º: 1552.04.25 ‒ Tombo da Comenda de Fornelos, termo de Ponte de Lima. Fornelos, tendo Beiral como anexa, constituía uma comenda da Ordem de Cristo. Só uma das vinhas do passal produzia doze pipas de vinho; e referem-se outras vinhas.
[3] Marcus Porcius Cato, De Re Rústica, XII.