A propósito de vinho...

                                    Uma lagareta ao ar livre, ainda em uso no século XIX
                                    na freguesia de Fornelos, concelho de Ponte de Lima
  
Nasci na freguesia de Fornelos, situada, conforme já lembrámos,a sul de Ponte de Lima, concelho de que faz parte, iniciando-se a cerca de um quilómetro da vila, exatamente com o Campo de Golfe de Santo Amaro, e prolongando-se ao longo de quase sete quilómetros, até chegar à da Queijada. O seu território, pela banda do poente, era bordejado pela velha estrada romana, de que chegaram aos nossos dias dois marcos miliários, e hoje é atravessado pela estrada nacional que liga Ponte de Lima a Braga e cortado em diagonal, na sua metade norte (a “meia de baixo”), pela nova autoestrada. Na metade sul (a “meia de cima”), correm as águas do acidentado Trovela, de saborosas trutas, marcado por açudes, de onde nascem levadas para a rega dos campos, e, em fase de total desaparecimento, moinhos, engenhos de serração e lagares. Pela margem esquerda do Trovela seguia um velho caminho que, noutros tempos, galgada a serra, ligava a Terras de Bouro, a Amares e a outras localidades do interior, até ao Barroso, desde o século XIX dividido entre Boticas e Montalegre, e a Chaves.
Os meus verdes anos tiveram como cenário esta multifacetada paisagem, cujo apelo ressoa nos meus ouvidos, como no poema de Diogo Bernardes, que certamente calcorreou alguns dos seus caminhos quando, vindo das terras da Nóbrega, ia visitar o grande mestre e amigo Sá de Miranda, no plácido “refúgio” de Duas Igrejas:
Llamam por mi las fuentes y los rios,
Los prados y los bosques de mi tierra,
Todo valle me llama, toda sierra,
Por do gastè los tiernos anos mios.
(Diogo Bernardes, Rimas Várias Flores do Lima,
                        soneto LXIX)

     Propondo-me apresentar, no II Congresso Internacional “Vinha e Vinhos”, um estudo diferente da cerrada análise de antiga documentação em que baseei as comunicações de anos anteriores[1], encontrei nesta freguesia ligada às minhas origens o tema da presente comunicação: “Uma lagareta ao ar livre, ainda em uso no século XIX, numa freguesia do concelho de Ponte de Lima”.

*  *  *
Nas Inquirições ordenadas por D. Afonso III, em 1258, ao chegar à freguesia de Fornelos, não se faz referência a qualquer renda ou tributo relacionado com a cultura do vinho, embora fosse provável que já aí se praticasse. Curiosamente, o vinho é mencionado genericamente no foral manuelino de Penela (julgado de que então a freguesia ainda fazia parte), em relação ao reguengo da Ribeira de Trovela, atualmente a área da freguesia onde a vinha é mais escassa. Se o havia na ribeira de Trovela, com maior razão o haveria noutros lugares. Com o andar dos tempos, a vinha estender-se-ia a toda a freguesia, espalhando-se pelos terrenos mais altos e pelas encostas, devido à situação geográfica, voltadas a sul, com excelente exposição solar, o que possibilitava a produção de vinho de excelente qualidade. Aliás, a vinha no século XVI teria aqui um grande incremento, como revela o Tombo da freguesia, cuja primeira versão é de 1552[2].
Na altura das vindimas e de outros trabalhos agrícolas, acompanhei muitas vezes os meus familiares a uma propriedade que os meus avós maternos receberam em doação de uma pessoa amiga, a “tia Maria viúva”, a qual se designava como o “eido da Torre”. Era assim que então se chamava, apesar de oficialmente não pertencer ao lugar da Torre mas sim ao do Juncainho. O “eido da Torre” apresentava o aspeto de em tempos idos fazer parte de uma herdade ainda maior, toda ela rodeada pelo caminho público, como se fosse uma ilha. Com o andar do tempo, essa herdade ter-se-á fragmentado, repartida por vários herdeiros.


 Um aspecto do eido da Torre, onde está bem presente a cultura da vinha

No eido despertou a minha atenção uma curiosa lápide que, a poucos metros da antiga casa de habitação, se acostava a uma oliveira, por sua vez, a meia altura do tronco, perfurada por um orifício retangular, que, vim a entender depois, se destinaria ao encaixe de uma trave. A oliveira, que nessa altura, apesar da cicatriz, produzia azeitona como as outras, foi removida por ocasião de obras posteriormente levadas a cabo nas imediações. 
Do conjunto sobrevive ainda a lápide de granito, cuja fotografia se apresenta. Mede cerca de 1,40 m., de comprimento, por cerca de 1 m., na parte mais larga, exibindo um perfil e umas dimensões um tanto irregulares, como a fotografia evidencia. Corre a toda a sua volta um rebordo, que já nos tempos da minha infância estava remendado, para compensar uma falha, ocorrida nos tempos do seu fabrico ou em movimentações posteriores [Estampa 4]. Na parte mais estreita, onde, em correspondência com a inclinação com que estava colocada, o rebordo é também mais alto, foi cavada a abertura, como logo se vê, destinada a dar escoamento ao líquido extraído das uvas.
 

 Dois aspectos da lagareta rudimentar existente no eido da Torre
De facto, não é difícil concluir que estamos perante uma pequena lagareta, cuja função era a de prensar as uvas esmagadas após a vindima. O “eido” a que pertence localiza-se num terreno que se pode considerar plano, relativamente alteado em relação ao meio circundante, carente de acesso a correntes de água, proporcionando apenas a realização de culturas de sequeiro; no rebordo da herdade havia latadas, que se mantêm no presente, assim como na área onde foi construída a casa onde reside o atual proprietário. Incluindo algumas uvas excelentes da casta loureiro, as que aí se colhiam davam ótimo vinho.
Numa das fases do respetivo fabrico, utilizar-se-ia esta lagareta rústica, a meio caminho entre as mais rudimentares congéneres da proto-história e os lagares mais evoluídos introduzidos pelos romanos, bem conhecidos através da descrição feita por Catão no II século a. C., no De Rústica, por vezes designado como De Agricultura[3]. Os lagares romanos, destinados às grandes explorações agrárias da época, eram equipamentos pesados, integralmente construídos em pedra e grossas traves de madeira e com aplicação de cordas, e têm sido objeto de algumas reconstituições na atualidade. 

 
    Reconstituição de um lagar romano, em França       
(Mas de Toureles, Beaucaise)      

De mais pequena dimensão, a lagareta aproxima-se mais desse do que de um novo tipo de lagares – os lagares de parafuso – inventados ainda na época romana, mas num período mais tardio, e resultantes da aplicação de um aperfeiçoamento exigido se não pelo afuloamento dos tecidos, talvez pelos lagares de azeite, cuja extração é mais lenta, mas o seu uso no fabrico do vinho é atestado em miniaturas do começo da Idade Média e manteve-se até ao século XX: a pressão transmitida pela alavanca de madeira era, de facto, obtida através de um grosso parafuso nela encaixado e agarrado a um peso, feito de pedra e suspenso ou preso no solo, como sucedia nos grandes lagares da Borgonha.
Na lagareta do “eido da Torre” recorria-se à pressão transmitida por uma trave sobre uma tampa colocada em cima das uvas, mas sem utilizar o parafuso. Num dos extremos, a alavanca fixava-se no orifício aberto no tronco da oliveira; do outro, se não se recorria unicamente à força braçal, suspender-se-ia um peso, com a provável ajuda de uma corda. É impossível dizer se o orifício do encaixe foi aberto numa oliveira existente e em produção normal, ou num tronco de oliveira então espetado na terra, que depois ganhou raízes e cresceu, lançando ramos e dando fruto, como é normal acontecer nestas árvores, mesmo depois de estarem arrancadas da terra e cortadas durante longo tempo.
Lagaretas funcionando de modo semelhante utilizaram-se no mundo mediterrânico, até épocas bem próximas da nossa, colocadas ao ar livre ou abrigadas no interior, como se pode observar num exemplo recolhido na Sicília. 



 Lagareta primitiva recolhida em Buscemi, Palazzolo, na Sicília 
(do nosso lado direito, na fotografia)

No nosso eido, observámos ainda uma pedra rude, também de granito, que pode ter servido como peso. Como este não seria muito, devido às limitadas dimensões da pedra, é possível que esta tenha dado lugar a outra, de xisto, com maiores dimensões, dotada também de um orifício cuidadosamente aberto, que serviria para introduzir e prender a corda com que se amarrava à trave. Note-se que a rocha prevalecente na localidade é o xisto, pelo que se o granito da lagareta, por causa da dureza que exigia a sua função, veio de mais longe, o mesmo se não observava em relação ao xisto. 

 
Pesos: um de granito (à nossa esquerda) e outro de xisto (à nossa direira) existentes no eido da Torrre



De granito, há muito deslocada para outras funções e para outro local, era também uma pia, que pode ter sido usada para recolher o líquido resultante da espremedura das uvas, no momento em que escorria da lagareta.

 Pia de granito proveniente do eido da Torre

Antes de terminar, uma última questão se coloca, entre outras que serão possíveis: em que data se fez e começou a usar esta lagareta?
O único elemento que nos podia ajudar a estabelecer uma cronologia para as suas origens era a oliveira a que esteva acoplada. Como essa oliveira já não existe, resta-nos olhar para as que ainda se mantêm na herdade, uma vez que, na nossa memória, o tamanho destas árvores era semelhante. Considerando o tempo que levam a desenvolver-se e a respetiva espessura, somos levados a pensar que datarão de meados do século XVIII, mais década menos década. Quando a propriedade veio ter à minha família, por volta de 1930, já não era utilizada, nem se recolheu memória de quando tinha deixado de o ser.
Assim fica registado aquilo que conseguimos saber acerca desta humilde lagareta rústica, onde por certo, ao menos ao longo de um século, se espremeram uvas, cujo vinho, em moderada quantidade, devia ser, no entanto, de boa qualidade, como aquele que no tempo da minha juventude aí se colhia.
2012.10.05
António Matos Reis


[1]Vinho e vinhedos nas terras do Alto Minho na Idade Média”, no Congresso Internacional “Vinho Verde – História, Sociedade, Economia e Património”, Maia, 19-21 de outubro de 2007, publicado em  Atas do I Congresso Internacional de Vinho Verde, Porto, 2010, pág.21-36.; “A vinha e o vinho nas origens dos municípios”, no I Congresso Internacional Vinhas e Vinhos, publicado em  Atas do I Congresso Internacional Vinhas e Vinhos, Câmara Municipal de Viana do Castelo, pág. 63-73.
[2] A. D. B. – Registo Geral, livro 2, fl. 280 v.º - 286 v.º: 1552.04.25 ‒ Tombo da Comenda de Fornelos, termo de Ponte de Lima. Fornelos, tendo Beiral como anexa, constituía uma comenda da Ordem de Cristo. Só uma das vinhas do passal produzia doze pipas de vinho; e referem-se outras vinhas.
[3] Marcus Porcius Cato, De Re Rústica, XII.